Muitos tentam explicar por que os EUA não gostam de futebol, mas Roberto DaMatta criou uma teoria impecável. Ela faz parte das muitas sacadas que aparecem em A Bola Corre Mais que os Homens (Rocco, 216 págs., R$ 27,50), reunião de 39 crônicas e três ensaios sobre futebol em geral e as Copas do Mundo de 94 e 98 em particular.
Tentam explicar o desprezo ianque em relação ao esporte mais famoso com a chamada "teoria do placar". Americanos não suportam esportes em que a pontuação é baixa, 1 x 1, 3 x 2 e, o pior, 0 x 0. Essa explicação tem um furo: o beisebol, uma das febres nacionais, raramente tem placares de dois dígitos e, com freqüência, exibe resultados que lembram os do futebol. Só para ilustrar, na quinta-feira passada, em Nova Iorque, o encontro entre Mets e Phillies (da Filadélfia) terminou 5 x 3 para os visitantes. Pelo menos uma dúzia de jogos do campeonato espanhol na temporada passada tiveram resultado semelhante.
DaMatta cita a "teoria do placar" e a complementa com outra, segundo a qual o futebol é sensual demais para o puritanismo americano. Ao contrário do futebol americano, do beisebol e do basquete , o futebol (ou soccer) é jogado com os pés e não com as mãos. "Esses pés que falam de pernas, quadris e de outras partes situadas abaixo da cintura, esse quadrante abominado pela cultura burguesa em geral e pelo puritanismo americano em particular." O antropólogo diz ainda que jogar com os pés é incerto e impreciso demais para uma cultura obcecada por exatidão e previsibilidade como é a americana.
As 26 primeiras crônicas, escritas em 1994 e publicadas pelo Jornal da Tarde, falam bastante dos EUA porque o país do Big Mac foi anfitrião da Copa do Mundo naquele ano. O autor admite não ser um especialista em futebol é incapaz de analisar táticas ou desempenhos desapaixonadamente. Ele se assume como torcedor, daqueles que esbravejam e xingam de maneira irracional durante um jogo importante.
Por não ser um comentarista esportivo, DaMatta observa o esporte à luz do sua formação doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard. Os momentos mais inspirados do livro são aqueles em que tenta questionar certas máximas futebolísticas que detratores usam sempre que precisam tecer críticas. Há uma que apresenta o futebol como instrumento de alienação. "Alienar como, se a imensa paixão é pelo Brasil?", questiona o escritor. "Como alienar, se a densidade do elo torcedor-Brasil se faz justamente pelo fato do Brasil ser o que é: um país que só faz manchete internacional por suas vergonhas."
Para DaMatta, o "milagre do esporte" é a transformação que opera na auto-estima nacional, "que faz esquecer as injustiças e pensar apenas nesse Brasil que, na bola, é o melhor e o mais justo". E conclui o raciocínio com uma profecia: "Um dia (...), veremos essa mesma paixão queimar também pelo nosso cotidiano injusto, violento e cruel".
Talvez por terem sido publicados em jornais as 13 crônicas da Copa de 98 saíram em O Estado de S.Paulo , a linguagem do escritor é bastante acessível e nada acadêmica. Um pouco diferente dos três ensaios que fecham o livro. O primeiro deles, publicado na Revista USP: Dossiê Futebol, da Universidade de São Paulo, procura o significado social do futebol brasileiro. No percurso, destaca fatos curiosos. No Brasil, o futebol se transformou em um "professor de democracia e de igualdade". A ligação do país com o esporte é tão grande que muitos ignoram sua origem inglesa, pensando que ele faz parte do universo formado por "mulatas, samba, feijoada, jogo do bicho, cafuné, sacanagem e saudade".
A Bola Corre Mais que os Homens perde um pouco do vigor analítico quando o autor fala de si e de suas experiências com futebol o que acontece na introdução: "No decorrer do jogo disputadíssimo, vi papai sendo solicitado a tomar partido, mas declinar polidamente, consciente como sempre de seu papel como funcionário público federal". Outro porém, inevitável, é a repetição da frase do título da obra. No jornal, o efeito era o de um bordão que arrematava os textos. No livro, lendo as crônicas uma atrás da outra, pode ficar um pouco chato.
"O futebol é importante não porque ele faça esquecer as mazelas e as mistificações rotineiras, mas porque a experiência com a vitória, com a excelência, com o esforço e o sacrifício coletivos, com o entregar-se de corpo e alma a uma camisa-causa, permite voltar ao trabalho com novas disposições." Amém.
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