Merkel: reconhecida pelos próprios americanos como defensora dos melhores valores do Ocidente| Foto: Maurizio Gambarini/Reuters

Durante muito tempo, os americanos atribuíram a si mesmos um título tão polêmico quanto poderoso: seu país era o maior entre as grandes democracias ocidentais e, por isso, seu presidente deveria ser reconhecido como o verdadeiro “leader of the free world” – o “líder do mundo livre”. Questionada fora dos Estados Unidos, a expressão passou décadas sendo usada rotineiramente pela imprensa local, aparecendo também em filmes, discursos, campanhas políticas e até mesmo declarações de ministros e embaixadores. Agora, os próprios americanos começam a duvidar se isso ainda faz sentido: com Donald Trump se associando à Rússia e atacando a imprensa, muitos dizem que os valores democráticos estão em crise – e apontam para a Alemanha como a nova líder nesse contexto.

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A liderança americana veio após a Europa praticamente se autodestruir. Com a principais potências europeias em ruínas após a Segunda Guerra Mundial e enfraquecidas no cenário geopolítico, os Estados Unidos emergiram do conflito praticamente sem rivais à altura. Começava a Guerra Fria: o mundo passaria as décadas seguintes dividido entre os blocos capitalista e comunista, e a única nação capaz de competir com os americanos era a União Soviética. O termo então ganhou força a partir de 1947 e, na década seguinte, era comum ver os diferentes presidentes americanos serem colocados como “líderes do mundo livre”. De Harry Truman a Ronald Reagan, passando por John F. Kennedy, quem entrou no Salão Oval da Casa Branca durante o período da Guerra Fria, eles teriam também a missão de defender a democracia daquilo que a ameaçava – naquele momento, diziam os Estados Unidos, o maior medo era o comunismo.

Terrorismo

Com o colapso da União Soviética – e do comunismo – após 1991, essa ideia poderia ter saído de cena, mas um novo inimigo apareceu dez anos mais tarde: Osama Bin Laden. O “mundo livre” agora precisava de líderes que o defendesse do terrorismo islâmico.

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A expressão, porém, nunca foi unanimidade. Em ‘To Lead the Free World: American Nationalism and the Cultural Roots of the Cold War’, o historiador John Fousek, professor da Universidade Yeshiva, em Nova York, conta que nos anos 60 os críticos do termo apontavam a ironia de considerar “livre” um país onde os negros ainda eram discriminados pela lei e os movimentos trabalhistas eram perseguidos sob acusação de “comunismo”.

“[Para liderar o mundo livre], o título também requer que o presidente esteja comprometido com os valores de uma democracia liberal”

Sunny Hundal jornalista

A justificativa dos defensores apontava para o papel americano no cenário internacional: com todos os seus defeitos, ainda era a mais importante democracia do mundo, a economia mais pujante e o aparato militar mais completo. Se não fossem os Estados Unidos a liderar a cruzada contra os soviéticos (e, mais tarde, contra o terror), então quem seria?

Novos significados, uma nova liderança?

Mas nunca se questionou tanto o significado do “mundo livre”, mesmo entre os americanos, quanto nos últimos anos. Em 2015, a revista Time elegeu Angela Merkel como Pessoa do Ano, chamando-a de “Chancellor of the free world” (Chanceler do mundo livre). Após a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de novembro do ano passado, mais analistas passaram a sugerir que Merkel era a merecedora do título. O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse que o último telefonema internacional de seu mandato foi justamente para a chanceler alemã. “Não era apenas um adeus”, escreveu o jornalista Sunny Hundal em uma coluna no jornal britânico Independent, em fevereiro: “era uma passagem de bastão”.

Segundo Hundal, o poderio militar americano não pode ser o único critério necessário para liderar o “mundo livre”: “o título também requer que o presidente esteja comprometido com os valores de uma democracia liberal”. Os muitos críticos de Trump não acreditam que seu governo caminhe nessa direção, afinal, indicando políticos com histórico nacionalista, dando declarações consideradas xenófobas desde a época de campanha, minimizando a importância da liberdade de imprensa e se aproximando do pouco democrático governo da Rússia (em uma ironia ainda maior, o centro da antiga União Soviética), Donald Trump parece se afastar dos valores que seu país dizia defender historicamente.

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“A líder do mundo livre encontra Donald Trump”

Politico.com site político americano

Trump também ostenta os piores índices de aprovação para um presidente recém-eleito, chegando a 35% segundo as últimas pesquisas. Obama, nesse mesmo momento de seu primeiro mandato, contava com 62% de apoio popular, conforme levantamento feito pelo instituto Gallup no início de abril de 2009.

Enquanto Trump despencava, Angela Merkel ganhou proeminência por seu papel liderando a União Europeia em meio às crises migratórias e, agora, às turbulências causadas pelo processo do “Brexit”. A chanceler alemã se tornou tão influente – e, para muitos, tão merecedora do título normalmente concedido aos ocupantes da Casa Branca – que, durante sua visita a Washington, um dos principais sites políticos americanos, o Politico.com, decretou: “A líder do mundo livre encontra Donald Trump”. O encontro entre os dois dignitários acabou repleto de polêmicas e um dos momentos que mais chamou a atenção foi a recusa de Trump ao aperto de mãos proposto por Merkel durante uma sessão de fotos.

Perspectivas

Apesar das crescentes críticas a Trump, nem todos compartilham do entusiasmo com Merkel. Constanze Stelzenmüller, pesquisadora convidada da Brookings Institution de Washington e especializada em política externa alemã, lembra que antes de ser considerada a líder do “mundo livre”, a chanceler precisa se garantir como líder da Alemanha. O país se prepara para eleições em setembro, e as pesquisas apontam Merkel em empate técnico com Martin Schulz, candidato do Partido Social Democrata, que também tem uma plataforma favorável à União Europeia. No caso dos Estados Unidos, é muito cedo para desacreditar o governo apenas pelas posturas de Donald Trump.

“É importante fazer uma distinção entre os Estados Unidos e alguns dos seus líderes, e entender que há diferentes pensamentos mesmo dentro da Casa Branca”

Constanze Stelzenmüller pesquisadora convidada da Brookings Institution de Washington
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“É importante fazer uma distinção entre os Estados Unidos e alguns dos seus líderes, e entender que há diferentes pensamentos mesmo dentro da Casa Branca”, analisa, em entrevista à Gazeta do Povo.

Stelzenmüller ainda lembra que a própria Angela Merkel não gosta do novo título que a imprensa internacional tem lhe dado: “é importante destacar que Merkel tem se esforçado em dissipar as tentativas de colocá-la como líder do mundo livre, apontando para as limitações muito reais do poder da Alemanha e dela própria”.

Para a pesquisadora, antes de qualquer ambição mundial, tanto Merkel quanto Schulz terão de encarar problemas internos reais (como a crise imigratória) e aqueles que classifica como imaginários: “são os temores impulsionados pela extrema-esquerda e extrema-direita, e pela propaganda russa, de que a Alemanha está sendo prejudicada pelas forças da globalização – e que é possível fazer algo para acabar com elas”.