Deram-nos umas toalhinhas quentes, brancas e enroladas, daquelas que oferecem em restaurantes japoneses antes da refeição. Viajávamos por uma companhia área de Cingapura. A senhora ao meu lado passou a toalha no rosto, em movimentos circulares e vagarosos. Depois, a esfregou nas mãos e no meio dos dedos. Imitei. De repente todos estavam com a toalhinha quente nas respectivas caras e, com as aeromoças em trajes típicos de Cingapura – vestido florido em seda reluzente, coque na cabeleira preta e batom vermelho carpaccio –, cogitei a hipótese de nos servirem sushi e sopa de missô ali mesmo, ainda em solo.
As asiáticas têm um sorriso permanente e com elas íamos para Cingapura – a capital tem o mesmo nome do país. Escala em Barcelona, meu destino. Por lá aconteceria a 15.ª edição do Primavera Sound Festival, evento musical gigantesco e memorável: pense em um parque do tamanho de 180 campos de futebol com 175 mil pessoas e algumas de suas bandas favoritas entre todas as 217. Após a decolagem nos entregaram o cardápio de bebidas. Experimentei um horroroso drinque “típico de Cingapura” que leva gim, licor de cereja, suco de abacaxi e limão. Ninguém mais no avião pediu aquilo. Deve ser como beber caipirinha na TAM, virar um rabo de galo na GOL. Chegaram os vinhos, aí sim.
Logo dormi, com uma piada nonsense latejando na cabeça: “Imagina se esqueço de descer e amanheço em Cingapura, com cingapurianas me servindo o drinque típico de Cingapura numa praia da cidade de Cingapura”. Como se o Boeing 777-300, com 362 passageiros, fosse um ônibus amarelinho daqueles em que viajamos da Rui Barbosa às Mercês, no qual às vezes nos esquecemos de apertar o botão porque dormimos com a cara afundada no vidro embaçado.
Viajar é encontrar o incógnito, mesmo quando o destino nos parece plausível. Era a minha segunda vez em Barcelona. Tinha lembranças do outono: a praia estreita de Barceloneta, o vento que soprava do Mediterrâneo e investia nas camisetas de brasileiros desprevenidos, as tapas que pedem por uma cava, as cores da cidade. Desta vez era fim de maio. Reencontrei Barcelona no início da primavera, estação que parece chacoalhar ainda mais aquela repartição catalã multiétnica e engenhosa.
Desembarquei em Barcelona depois das eleições municipais. Não havia santinhos nas ruas, mas era perceptível o clima esperançoso que precede, ainda e apesar de tudo, a alternância de poder. Ainda mais ali, cidade que teria pela primeira vez uma mulher como prefeita. Uma mulher como Ada Colau, ativista antidespejo. “Sim, estamos contentes porque estão olhando para nós”, me disse Mara, vendedora de bugigangas em uma banquinha da Plaza Catalunya, a Tiradentes deles. “Eu e toda minha família votamos em Auda.” Fazia 25 graus e o vento fresco da tarde era perfeito. Comprei uma garrafa de água fria.
Da primeira vez, imaginei que o catalão era uma mistura do que chamei de língua do Mussum com um português banguela. Há palavras em que sobram “esses” e “is”. Em outras, faltam vogais. “Peix Fresc” é o que se lê na fachada de uma quitanda no La Boquería, o “mercat” municipal de Barcelona. As peixarias ficam no centro, exibindo atuns boquiabertos e lagostas vivas. Ao redor, há banquinhas com tudo – de salada de frutas a pimentas das bravas.
Estar na Europa nos faz lembrar do quão jovens somos enquanto nação ocidentalmente estabelecida num mundo capitalista (e o que isso determina, principalmente politicamente): uma plaquinha discretamente posicionada no mercado diz que o espaço existe desde 1217, quando mesas foram colocadas para fora do portão da cidade pela primeira vez, para servir pão e cerveja a viajantes medievais.
Uma amiga mora na cidade há cinco anos. Fala espanhol perfeitamente, com a língua entre os dentes para fazer o som de “s” que ressoa como o momento posterior àquele em que um chumaço de cabelos entra na sua boca sem querer. Lê catalão, entende contextos de conversas triviais, mas não se arrisca a falar. Ela trabalha numa agência de comunicação em Barcelona, com três norte-americanos. Faz flyers, folders e mapas num escritório da Via Laietana, importante avenida que fica ao lado do Parc de la Ciutadella e liga a cidade velha ao mar. Trabalha das 8 da manhã às 4 da tarde. Às sextas-feiras, me diz, todos saem às 15 horas. Em julho, no verão, dificilmente se vê gente nos escritórios. Aproveitam as férias, usufruem do calor. E da música.
Chego de metrô ao Parc del Fòrum, espaço onde acontece o Primavera Sound. A movimentação não é grande na quarta-feira, 27 de maio, dia dos primeiros shows por lá. Bares ao redor vendem latas grandes de Estrella Damm e garrafas long neck de Moritz. Muitos tomam seus goles por ali mesmo, para evitar o preço da Heineken lá de dentro (R$ 12 a de 300 ml; R$ 20 a de 500 ml).
Anexo ao parque, mas fora dele, está o Auditori Forum, prédio de arquitetura singular que divide opiniões (é cinza escuro, há lacunas propositais e um revestimento com textura em relevo; acho bonito). O parque fica à beira do oceano. De dentro, veem-se indústrias e chaminés espetando o céu. Em contraste, uma grande ladeira de grama hiperverde, onde pessoas lagarteiam à espera do próximo show. Ou estudam Física, caso de um jovem cabeludo que repousava por ali, analisando gráficos e tabelas. A mistura dessas paisagens causa um interessante conflito de ideias e referências, talvez como a própria Barcelona, cidade fluida, sempre disponível. Faz um sol agradável, apesar da brisa fria que sopra do mar.
Às margens do parque, dois painéis solares gigantes chamam a atenção. Primeiro por sua beleza futurista, depois pela eficiência tecnológica. Parte da energia utilizada pelo festival provém desses equipamentos simples e funcionais. Avançando um pouco mais, chega-se à feirinha da lendária gravadora Rough Trade. Há CDs raros, camisetas inimagináveis e atendentes britânicas supersimpáticas que te fazem querer levar tudo em dobro mesmo com o preço em euros.
São 19 horas em ponto. O sol ainda está alto e a espanhola Christina Rosenvinge, com um indie pesado, dá início aos trabalhos do festival. Destaque improvável é o caboman, que parece nervoso demais e faz movimentos de saltador em distância para facilitar a vida do cinegrafista, um sujeito de boné que nunca olha para trás. Acaba o show e ao fundo do palco um cruzeiro imenso cruza o oceano.
No caminho para a área hiperverde, o Canal 3 espanhol pinça alguém do público para entrevistar. Fui proibido de entrar na área de imprensa por um segurança estúpido que não soube me explicar o motivo. Resolvi buscar solidariedade com a colega estrangeira. Sucesso: a sala destinada a jornalistas só abriria no dia seguinte. “Gracias.”
Antes do show do Cinerama, banda de David Gedge (frontman do The Wedding Present), dá tempo de sentar na grama, tomar uma cervejinha e refletir. Por que os espanhóis são assim, deliberadamente grossos? Parte de minha família veio de Nerva, cidade ao sul da Espanha. Lembro-me de meu pai dizer que às vezes tudo era meio bruto mesmo. Retratos do início do século passado, aos quais tive acesso recentemente, parecem corroborar a história: os antepassados de sobrenome Herrera, Machuca e Castilho posam sérios e soturnos, como se o mundo estivesse em preto e branco, e não as fotos. Os tempos eram outros, mas deve estar no sangue. Pois na Boquería, no dia anterior, tentei puxar papo com um senhor que me vendeu ostras geladinhas. Perguntei o nome do sujeito, de onde eram as ostras, se haviam colhido recentemente e... talvez este tenha sido o erro. A resposta foi um furacão catalão, dizendo com gestos e bocas: “É óbvio que são frescas! O que acha?”. Senti-me do tamanho de um marisco, mas estranhamente ele continuou a me atender com contida educação. Parece que esses rompantes de grosseria são ordinários, como um gol da Fúria em seus melhores dias.
O Cinerama sobe ao palco às 20h10 e o sol ainda está alto e morno. Vestido com paletó azul marinho, Gedge está acompanhado por um quarteto de cordas e tem flauta e trompete disponíveis. Faz um rock pré-indie clássico. “É o melhor festival do planeta!”, grita ele, minutos antes de me adicionar no Twitter. Há pouco, havia postado uma foto do show, acompanhada do seguinte texto: “@criscastilho: Cinerama, de David Gedge (Wedding Present). era meio Morrissey e tá cada vez + Wando. show bonito”.
É 21h15 e ainda está claro. Albert Hammond Jr., guitarrista do Strokes, ganha o palco ATP, um dos 16 do Primavera Sound. Está lotado. A grama hiperverde some debaixo de todos. O show é ao mesmo tempo dançante e barulhento e tem até cover de Buzzcocks. Já é perto das 23 horas, e isso é um problema porque é nesse horário que o metrô fecha as portas. Há ônibus, mas não sei ao certo como proceder – onde pegar, onde descer. O celular está prestes a morrer e recupero uma mensagem antiga com indicações sobre o metrô. “Pega a linha amarela, desce na estação Passeig de Gracia, troca para a linha roxa e desce na Paralel” – na verdade, em catalão é “paral-lel”. Dá certo.
São 14h30 do dia 28 de maio e preciso retirar o ingresso para o show do Panda Bear, que acontece no auditório. Noah Lennox, do Animal Collective, é um prodígio. Um amigo pediu para tietá-lo a todo custo. “Traz um fio de cabelo, ou um dente, ou algo assim”. Por 9 euros, almoço num restaurante vietnamita chamado Bun Bo. Desde que cheguei, é a refeição mais justa: salada e arroz, muito arroz, com o que parece ser ovo cozido, camarão e vegetais – ao comer, não sei por que me lembrei de “Platoon”, especificamente daquela cena em que o sargento Barnes (Tom Berenger) ordena a queima de toda a plantação de arroz (talvez porque há uma coincidência engraçada: depois de sair do Parc del Fòrum, ontem à noite, fomos ao Apolo, uma casa noturna em que acontecem shows não menos interessantes, os “extras” do festival. Quem tocou foi a... Viet Cong, banda canadense de pós-punk. Em um momento meio tenso o vocalista pediu para um rapaz guardar seu pau de selfie, com o qual filmava a apresentação. “Odeio isso!”, disse, ante vaias e aplausos concomitantes. Depois, descemos para a Apolo [2], uma boate escura propícia para a música eletrônica. Me perdi de Rúben, simpático amigo galego que conheci da primeira vez em que fui à cidade. Nos reencontramos e ele continua a falar sobre política, a dizer que, apesar de tudo o que vivemos no Brasil, dessa nova onda conservadora [ele trabalha com o pessoal da “Vice” e acompanha jornais], a Espanha é uma monarquia. “O que vocês precisam é de tempo”, me disse, já no fim da noite).
No auditório do Parc del Fòrum assisto ao Arthur Russel’s Instrumentals, grupo que homenageia o compositor norte-americano vanguardista, brother do Phillip Glass. Foram 75 minutos de música ininterrupta, com ótimos momentos e improvisos malucos de uma orquestra inteira. O Panda Bear viria na sequência, mas era preciso sair do teatro para entrar nele novamente. Muitos resmungaram, todos obedeceram.
Na fila, há um aviso de que não se pode entrar com comida nem bebida. Uma mesa de madeira serve de apoio para quem quiser deixar seus quitutes e resgatá-los depois. Muita gente faz isso, mas um hippie canadense está desconfiado. “Come aí, me ajuda, vai. Não quero jogar fora”, me diz um rapaz loiro, alto e cabeludo, com um sanduíche de queijo e presunto num pão de forma sem casca. Dou duas mordidas e ele, camisa de flanela e mochilinha nas costas, agradece. O Panda Bear? Foi incômodo, lisérgico demais. O som impreciso, somado às imagens repetitivas exibidas à exaustão no telão, tornou-se estranhamente viscoso.
Mas era também o dia de Thurston Moore, guitarrista do Sonic Youth. São 20h50. O som insanamente alto arremata uma apresentação memorável e genuína. Se sangue tivesse escorrido pelas orelhas, estaríamos no céu mesmo assim (ao meu lado havia um sujeito muito alto que fechava os olhos, levantava as mãos para o alto e balançava a cabeça em momentos aleatórios; talvez a felicidade fosse aquilo). Teve ainda a missa (do bem) do Spiritualized e a rave (do mal) do Sunn O))), troço assustador que colocou pessoas com capuz em um transe sinistro ao som de um canto gregoriano macabro. Fui embora depois das 23 horas. De ônibus. Tranquilo.
É dia 29, é dia de Ride, banda britânica essencial e influente em muitas épocas que volta à ativa depois de 20 anos. Na coletiva com Mark Gardener, relembro uma entrevista de 2012, quando ele me disse que a banda acabou “porque a relação entre eles já não era mais saudável”. Pergunto o que havia mudado para que Mark, Andy, Loz e Steve voltassem a tocar juntos. E percebo o surgimento instantâneo de uma nuvenzinha sobre a cabeça do inglês, apesar da resposta educada. Ao fim da coletiva, me desculpo por “alguma coisa” – o que menos queria, por Deus, era implodir o único encontro com um dos caras à frente de uma das minhas bandas favoritas. “Nunca peça desculpas por suas perguntas. É o seu trabalho”, me disse Mark. Estava tudo bem.
Ride engata a música “Taste” e comungo um high five com um camarada galego chamado Pablo Hentschel Fernández. “Essa é foda!”, dizemos simultaneamente. Ao fim de tudo, e depois de conversas sobre música e outros festivais europeus, ele come gelatinas em forma de garrafinhas de refrigerante. Pergunto se há algo mais ali, além de açúcar, e ele me diz: “I don’t know” com aquela carinha do Coringa de Heath Ledger.
O sábado amanhece resoluto. É 30 de maio. Está quente. É o dia da final da Copa do Rei da Espanha, entre Athletic Bilbao e Barcelona. Nas ruas, grupos de torcedores rivais se provocam, e ao mesmo tempo se reconfortam. O primeiro time é do País Basco, região ao Norte da Espanha que, como a Catalunha, também clama por independência. Soube do resultado já no festival (3x1 para o Barcelona, com um gol impossível de Messi, sobre o qual os atleticanos não falaram), mas assisti aos melhores momentos da partida dias depois. Foi assustador ouvir 100 mil pessoas (70% catalães e 30% bascos) vaiarem enlouquecidamente o hino nacional do país do Rei Juan Carlos, que, definitivamente, não é o mesmo deles.
A independência da Catalunha está em cada bandeira vermelha, azul e amarela pendurada nas janelas dos apartamentos. E em quiosques que fornecem jornais e panfletos sobre a causa. “Aqui é meio a meio”, me diz, em catalão, uma senhora numa dessas banquinhas. “As pessoas querem assumir sua identidade, mas têm medo do que pode acontecer com seu dinheiro”, explica. O folheto anuncia que há um plebiscito marcado para o dia 27 de setembro. “Andamos devagar, mas andamos”, comenta, balançando a bandeirinha da Catalunha na mão direita.
No último dia de Primavera Sound, as costas reclamam. Sob um sol insistente, vejo o bonito show do American Football, banda emo com toques sinfônicos que também retornou depois de grande hiato. No palco principal, o moleque Marc DeMarco canta “Yellow”, do Coldplay. Não consigo perceber se é irônico ou não, e tenho raiva disso. O Foxygen é uma banda superestimada, mas ao vivo é ótima – o vocalista Sam France parece um Jim Morrison saudável. Estou cansado. Durmo alguns minutos antes do show do Interpol, até que um italiano me pergunta se estou bem e me oferece refrigerante. No palco, ao que parece, há um problema: as luzes se apagam e não voltam a acender. Se sentindo em casa, Paul Banks e companhia destilam um repertório completo, com intervenções de um silêncio solene do público em músicas que pediam isso, como “NYC”. Despeço-me do Primavera Sound ao som de Babes Toyland, banda grunge nervosa integrante do movimento Riot Grrrl (odiado por Kurt Cobain apesar de Courtney Love ter participado do grupo em seu início, no fim dos anos 1980).
Dá praia no domingo. É o último dia. Barceloneta está repleta de turistas e moças europeias muito brancas. Pouca gente se atreve a entrar na água, exceto por surfistas com suas pranchas enormes. Um passarinho catalão sobe na mesa em que estou e belisca um pedaço de batata frita. No cardápio, vejo que há um drinque chamado Singapore Sling. Pergunto à atendente latina o que é. “Esse não sai muito.” Rimos. Lembro que tenho um avião para pegar nas próximas horas.
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