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A ideia é simples e funciona mais ou menos como as missões exploratórias da Nasa em Marte. Pela distância – algumas dezenas de milhões de quilômetros –, pela tecnologia disponível e pelas características da atmosfera marciana, a agência espacial americana enviou o robô Curiosity para um reconhecimento do planeta estranho. De lá, o robozinho enviou fotografias, passeou pelo solo arenoso do lugar, fez análises laboratoriais, registrou colinas e vales – e você leu sobre tudo ou viu na televisão sem abrir mão dos confortos terrestres.

O método de trabalho de um jornalista, simplificando um tanto, funciona mais ou menos como o do robô Curiosity: ele é enviado a algum lugar (não necessariamente a dezenas de milhões de quilômetros) para reportar o que viu, descobriu e experimentou. O veículo que o mandou para longe ou não tão longe assim recebe o material, publica e vende para você. O jornalista experimenta o livro, o filme, o evento esportivo, a votação na Câmara dos Vereadores para que você, leitor, decida se quer perder tempo com essas coisas ou para que não perca tempo nenhum com elas.

Aqui entra David Foster Wallace (1962–2008).

O autor de “Graça Infinita” era um ficcionista com uma verve jornalística extraordinária, o que rendeu a ele alguns contratos com revistas e jornais importantes dos Estados Unidos, como “Harper’s” e “The New York Times”, para escrever textos antológicos sobre temas que pareciam pautas de quinta categoria, do tipo que um repórter mequetrefe de um jornalzinho qualquer no Meio Oeste americano executaria burocraticamente.

Wallace mesmo disse e outros – como o biógrafo D. T. Max e o jornalista David Lipsky – reproduziram que “a boa literatura deve ajudar os leitores a se tornarem menos sozinhos”.

A teoria que procuro defender neste texto é que Wallace conseguiu fazer isso – deixar o leitor menos sozinho – de um jeito espetacular também com seus ensaios. Ainda que “não se sentisse confortável com nenhum dos estilos literários dominantes”, como afirma Max em texto publicado pela revista “New Yorker” – e a prosa ensaística pode ser considerada dominante na imprensa americana –, Wallace escreveu ensaios totêmicos como nenhum outro autor de sua geração e inspirou figuras que vieram logo depois, entre elas John Jeremiah Sullivan (chega a ser obsceno como os textos do livro “Pulphead” remetem a Wallace) e Chuck Klosterman (escrevendo sobre televisão e cultura pop, mas também como o eticista, ou especialista em ética, do “New York Times”).

DFW por CWG

“Graça Infinita”, o livro de 1.140 páginas de David Foster Wallace, foi traduzido no Brasil pelo curitibano Caetano W. Galindo, colunista da Gazeta do Povo.

“Ficando Meio Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo” tem tradução de Daniel Pellizzari e Daniel Galera (e organização do segundo).

“Breves Entrevistas com Homens Hediondos” foi vertido ao português por José Rubens Siqueira.

Todos foram publicados pela Companhia das Letras.

A maior preocupação de Wallace era mesmo com a ficção e isso o fazia encarar os trampos jornalísticos como pequenos desvios que pouco ou nada tinham a ver com seu projeto literário. A certa altura, ele chegou a temer – ou essa foi a interpretação do biógrafo dele – que a incursão pelo jornalismo estivesse dificultando ainda mais a escrita de seu romance derradeiro, o inacabado “The Pale King”, a ser publicado no Brasil pela Companhia das Letras. “Depois de ‘Graça Infinita’, Wallace começou a sentir que sua prosa muitas vezes era arrogante e árida com uma certa frequência”, escreve Max. “Sem se render ao realismo, ele queria contar suas estórias de um jeito mais direto.”

É possível perceber o impulso que animava os romances e contos de Wallace, de “contar de um jeito mais direto”, também nos ensaios e com uma vantagem concedida pelos moldes do gênero: assim como a prosa de ficção, um ensaio aceita quase tudo em termos de estilo, embora a relação estabelecida com o leitor seja diferente.

Porta de entrada

Não é por acaso que a não ficção de Wallace costuma ser encarada como uma “porta de entrada” para sua obra, nas aspas do escritor Daniel Galera, organizador do livro “Ficando Longe do Fato de Estar Meio Que Longe de Tudo” (doravante abreviado como “Ficando Longe”). Na apresentação do volume de ensaios, Galera destaca que o autor exige um “grande esforço do leitor” – ele se refere ao tijolo “Graça Infinita”, de 1.140 páginas –, e que essa exigência é parte de sua estratégia, impondo técnicas narrativas complexas, linguagem rica e uma extensão intimidante. Em comparação, os textos para revistas e jornais são, ainda segundo Galera, “intelectualmente estimulantes e ao mesmo tempo calorosos, convidativos e com frequência hilários”.

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Meu argumento é que os ensaios de Wallace estão absolutamente ligados ao projeto ficcional que ele havia elaborado para si, embora ele próprio os encarasse como um exercício menor (porém agradável). “Não sei por que a relativa facilidade e o prazer de escrever não ficção sempre confirmam minha intuição de que ficção é o Que Eu Realmente Tenho Que Fazer”, disse Wallace numa carta ao escritor Don DeLillo. Ele parecia ignorar o quanto sua ficção e sua não ficção estão conectadas não somente pelos temas – argumento exposto no prefácio de “Ficando Longe” –, mas principalmente pelo esforço de dizer algo de maneira franca.

Wallace foi contratado pela revista “Harper’s” em 1993 para escrever sobre a Feira Estadual de Illinois (no texto “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”) e, em 1995, pela mesma publicação, para contar a experiência de fazer um cruzeiro luxuoso de sete dias pelo Caribe partindo do sul da Flórida (“Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”). Ambos os textos foram compilados no livro que empresta o título do texto sobre a feira agropecuária, publicado no Brasil em 2012. O volume conta com outros quatro ensaios, inclusive o famoso “Isto é água”, pensado como um discurso de formatura para os formandos do Kenyon College e mais tarde transformado numa espécie de manifesto sobre uma das noções mais valiosas para Wallace: a de que a ficção “é sobre ser uma porra de um ser humano”. E isso vale também para a não ficção dele.

Vou usar os dois trabalhos para a Harper’s, mais o “Pense na Lagosta”, feito para a revista “Gourmet” em 2003 e também compilado por Galera, sobre o Festival da Lagosta do Maine. Os três textos são perfeitos para analisar os mecanismos do ensaio que o escritor usou – e desafiou – para criar um relato direto, sincero, honesto.

Forasteiro

Ao falar sobre a Feira Estadual de Illinois, Wallace se dispôs a viajar até Springfield, no estado que dá nome ao evento, situado no Meio Oeste americano, para relatar as etapas da festividade que marca o calendário da região. É quando os produtores e criadores apresentam os resultados de seus trabalhos, se reúnem para trocar ideias, fazer negócios, brincar em parques de diversão e comer. Comer muito.

Wallace cresceu na área rural de Illinois, porém deixa claro desde o início que se sente um forasteiro fazendo aquele esforço de reportagem:

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“Por que exatamente uma revista classuda da Costa Leste está interessada na Feira Estadual de Illinois continua sendo um mistério para mim. Suspeito que de vez em quando os editores dessas revistas dão um tapa na testa, lembram que cerca de 90% dos Estados Unidos ficam entre as Costas e resolvem mobilizar alguém com chapéu de explorador para fazer uma cobertura antropológica de qualquer coisa rural e interiorana. Acho que decidiram me mobilizar dessa vez porque na verdade eu cresci perto daqui, a apenas duas horas de Springfield, no sul do estado. Só que eu nunca fui à Feira Estadual quando era novo – meio que dei o serviço por encerrado ao chegar no nível da Feira Municipal.”

O fato é que ele se assume como alguém vindo da Costa Leste, um sujeito com temperamento mais ligado à “revista classuda” do que aos criadores de novilhos no miolo do país. Num momento divertido, Wallace encontra um estande que vende camisetas com frases engraçadinhas como “Cuidado: vou de 0 a tezuda em 2,5 cervejas” e “A gente poderia se dar bem... se você fosse uma cerveja”. Ele lista com cuidado todas as estampas absurdas que vê no lugar e, ao falar com a mulher do caixa, acaba fazendo uma única observação: que “tezuda” está escrito errado. “[E] agora me sinto mesmo um esnobe da Costa Leste”, diz ele.

O coração do texto é a teoria do autor para explicar o que faz a multidão de pessoas que comparece à feira se submeter voluntariamente às (e suportar as) circunstâncias incômodas – todas devidamente listadas por Wallace: do calor às filas, da comida de qualidade duvidosa (ao menos no que diz respeito à saúde) aos brinquedos deprimentes e aterrorizantes do parque de diversões, dos shows toscos à retórica rasteira das empresas que participam do evento.

Ele conclui que a confusão toda do lugar, o empurra-empurra e os estímulos fuleiros representam a chance que os moradores de uma região rural têm de ver pessoas – muitas delas, seus vizinhos – e engajar numa espécie de comunhão. Por sua vez, um urbanoide vive um dia a dia com estímulos suficientes e contato humano o bastante para encarar uma tarde na Feira Estadual de Illinois como uma espécie de martírio, uma provação. De fato, fica claro que o evento é um martírio para Wallace, que chega ao extremo de carregar consigo um chaveiro que emite sinais sonoros para afastar mosquitos (e ele cita o chaveiro e o estranhamento que o aparelhinho causa no meio da multidão, como se fosse o único no lugar incomodado com os insetos).

Fato: vemos a feira pelos olhos de Wallace. Ao se colocar no centro da história, expondo seu desconforto e sendo crítico com o fato de se sentir desconfortável, ele pratica o que Phillip Lopate chama de “ensaio pessoal”. No volume “The Art of the Personal Essay” (sem tradução brasileira), Lopate, ele mesmo uma referência entre ensaístas americanos, cria um argumento bom sobre a força do ensaio pessoal:

“A maior marca do ensaio pessoal é a intimidade. O escritor parece estar falando diretamente com você, confidenciando tudo – de fofocas até sabedorias. Ao compartilhar pensamentos, memórias, desejos, reclamações e devaneios, o ensaísta cria uma relação com o leitor, um diálogo – uma amizade, se você preferir, baseada em identificação, compreensão, cumplicidade e companheirismo.”

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Para Lopate, essa intimidade é construída com trabalho duro do escritor, que precisa ganhar a confiança do leitor. E este só vai acreditar no que lê se sentir que aquele que escreve é sincero. Um ensaio pessoal funciona quando se apoia no tripé intimidade-confiança-sinceridade.

O ensaio pessoal é o texto em que o escritor fala em primeira pessoa (explícita ou implícita), dividindo suas ideias e experiências com o leitor. “No núcleo do ensaio pessoal está a suposição de que há uma certa unidade na experiência humana”, explica Lopate, que defende o gênero como um dos tipos de literatura mais “acessíveis” que existe – por acessível é razoável supor que se refere à legibilidade do texto. E cita o “santo padroeiro” dos ensaístas, Michel de Montaigne (1533–1592), o francês que conseguiu ser universal ao falar de si mesmo nos detalhes mais insignificantes. Montaigne acabou revendo várias de suas opiniões nos ensaios que escreveu no fim da vida, um exemplo de como um ensaísta pode e deve colocar em xeque o próprio ponto de vista.

No ensaio sobre a Feira Estadual de Illinois, você pode se sentir desconfortável junto de Wallace – imaginando o calor pesado que fez o autor chegar ao meio da tarde com a terceira camisa do dia – ou questionar se ele não está, em alguma medida, sendo dramático demais – afinal, o que há de errado em exercitar um pouco de empatia?

“O ensaísta pessoal com frequência admite que poucos de nós conseguem permanecer honestos por muito tempo, pois humanos se autoenganam de maneira incorrigível e são animais que racionalizam”, escreve Lopate. “Ironicamente, é esse ceticismo em especial que equipa o ensaísta para a escalada difícil rumo à honestidade.”

Dúvida

Uma das engrenagens nos ensaios de David Foster Wallace é essa dúvida que não poupa nem o próprio autor. No texto sobre o cruzeiro de sete dias pelo Caribe, “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”, ele admite várias vezes que se sente inadequado para o trabalho que foi contratado para fazer e chega a citar um certo “Princípio de Peter”, uma teoria aplicada à Administração segundo a qual alguém é promovido até chegar ao cargo em que acaba demonstrando incompetência. (Um jeito cerebral e algo complexo – típico de Wallace – de admitir que se sente incapaz de escrever sobre outra pauta, pois não ficou claro para ele se a anterior foi mesmo bem executada ou não. Para os editores da “Harper’s” e para um sem-número de leitores, ela foi, evidentemente.)

Mas é com observações assim, meio autodepreciativas, que mostram reservas em relação a si mesmo, que um ensaísta vai ganhando a confiança do leitor. Como quando Wallace diz sofrer de um grau baixo de agorafobia, o medo de lugares públicos, se autodiagnosticando como um “semiagorafóbico”, o que torna mais difícil para ele enfrentar as dezenas de atividades coletivas propostas durante o cruzeiro.

Sim, é um cruzeiro de luxo com todas as regalias que uma viagem assim tem, mas o leitor não duvida que Wallace está sofrendo durante a maior parte do tempo. Ele chega a criar expedientes elaborados para poder ficar na cabine do navio o máximo que puder – como espalhar papéis sobre a cama e mentir para um dos membros da tripulação que leva comida para ele até a cabine. Wallace diz que está trabalhando e por isso teve de apelar para o serviço de quarto.

No entanto, há limites para o uso da experiência pessoal.

“O truque é perceber que não se é importante”, explica Lopate, “a não ser na medida em que seu exemplo sirva para elucidar um traço humano mais comum e fazer os leitores se sentirem um pouco menos sozinhos e bizarros”. Bingo.

Você acharia um exagero haver 11 refeições por dia durante os sete dias de um cruzeiro pelo Caribe? Pois Wallace acha isso também. Você consideraria pernóstico um diretor de cruzeiro vaidoso que se comporta como se estivesse “posando o tempo inteiro para uma fotografia que ninguém está tirando”? Wallace também.

O escritor descreve o esforço de tentar suportar alguns desses eventos irritantes até o ponto de achar que sua cabeça vai explodir. E daí, finalmente, ele vai embora. (Uma das anedotas célebres a respeito do escritor envolve a bandana que ele supersticiosamente usava o tempo todo, “para evitar que a cabeça explodisse”.)

Os mecanismos do ensaio pessoal descritos por Phillip Lopate são movidos por preocupações muito próximas das que Wallace tinha em relação à ficção. Sabe-se que ele combatia a ironia, o jogo que envolve dizer uma coisa querendo dizer outra para no fim dizer a primeira coisa que almejava dizer (ou talvez não); e ele colocava um bocado de esforço no trabalho de escrever de um jeito reto, sem subterfúgios nem artimanhas na hora de falar sobre o que pode ser encarado como piegas, bobo ou babaca, entregando um texto capaz de “reestruturar mundos e fazer as pessoas sentirem coisas”, como escreveu ele para o editor Michael Pietsch enquanto trabalhava em “Graça Infinita”.

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