Neil Degrasse Tyson, o astrofísico e apresentador da série de tevê “Cosmos”, fala em público regularmente sobre assuntos que vão de cosmologia a mudanças climáticas, passando pelo estado assustador da alfabetização científica na América.
Uma das histórias que conta tem a ver com uma frase dita pelo presidente George W. Bush no discurso para o Congresso após os ataques terroristas do 11 de setembro. Numa palestra de 2008, por exemplo, Tyson disse que Bush, querendo separar os muçulmanos fundamentalistas dos americanos de tradição judaico-cristã – para “nos diferenciarmos deles” –, afirmou o seguinte: “Nosso Deus é o Deus que deu nomes às estrelas”.
Tyson deixou subentendido que o presidente Bush foi preconceituoso contra islâmicos e preferiu criar um argumento mais amplo sobre conhecimento científico: na verdade, dois terços das estrelas têm nomes árabes e foram batizadas quando muçulmanos lideravam o mundo no campo da astronomia. Se soubesse desse fato, talvez Bush não tivesse dito o que disse.
Esse é um exemplo poderoso de como preconceitos podem nos deixar cegos. Mas não como Tyson imaginava – o cegado não foi Bush, pela intolerância religiosa. Na verdade, foi o dr. Tyson que acabou enganado pela própria fé na precisão de sua memória.
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Na realidade, em seu discurso depois do 11 de Setembro, Bush disse: “O inimigo da América não é nenhum de nossos vários amigos muçulmanos”, e não mencionou nada sobre estrelas. Bush de fato disse algo parecido com a lembrança de Tyson, mas foi em 2003, quando o presidente afirmou, num tributo para os astronautas mortos na explosão do ônibus espacial Columbia, que “o mesmo criador que deu nomes às estrelas também sabe os nomes das sete almas pelas quais rezamos hoje”. Críticos levantaram essas informações; alguns acusaram Tyson de mentir e argumentaram que o episódio deveria colocar em questão a idoneidade dele como cientista e defensor público.
Nós nos lembramos direito de vários detalhes [de um evento], mas, quando as memórias se transformam, nós apenas ‘ouvimos’ a versão mais recente da mensagem.
Quando questionado sobre a fonte da frase dita por Bush, Tyson insistiu: “Tenho uma memória clara do presidente pronunciando essas palavras. Na mesma hora tomei nota do que ele disse para uma possível referência no futuro. O estranho é que ninguém consegue encontrar essa frase em lugar nenhum”. E acrescentou: “Um de nossos mantras na ciência é que ausência de evidência não é a mesma coisa que evidência de ausência”.
É assim que costumamos responder quando nossa memória é desafiada. Temos uma compreensão abstrata de que pessoas podem se lembrar de um mesmo evento de modos diferentes. O filme “Rashomon” defendeu essa ideia mais de 60 anos atrás, cada episódio da série “The Affair” apresenta dois pontos de vista conflitantes e testemunhos contraditórios são típicos de dramas sobre crimes. Porém, quando nossas memórias são desafiadas, ignoramos tudo isso e respondemos emocionalmente, agindo como se tivéssemos que ter razão enquanto todos os outros estão errados.
Confiança excessiva na memória pode surgir em experiências cotidianas. Lembramos de eventos facilmente e com frequência, ao menos quando são importantes para nós, mas é raro ver nossas memórias serem desafiadas por evidências e muito menos ter a iniciativa de checar se elas estão certas. Então nos agarramos à confiança como sinal de precisão – confiança em nós mesmos e nos outros. Não é por acaso que o best-seller de Oprah Winfrey se chama “O que sei de verdade” e não “Algumas coisas que talvez sejam verdade”.
Temos aversão à falibilidade de nossas memórias e isso pode gerar problemas muito maiores que uma frase mal atribuída. Falhas de memórias parecidas com a de Tyson – que misturou experiências distintas – geraram convicções falsas e até sentenças de morte. Em quais memórias acreditamos e em quais não acreditamos influencia como nós interpretamos acontecimentos públicos controversos, caso dos eventos ocorridos em Ferguson, no estado do Missouri (EUA) [quando um homem negro desarmado foi morto por um policial branco].
Testemunhas com lembranças equivocadas se tornaram tão preocupantes que a Academia Nacional de Ciência convocou um painel de especialistas para revisar em que pé chegaram as pesquisas sobre o tema. No outono de 2015, o comitê (do qual um de nós, Daniel Simons, participou) publicou um relatório abrangente que recomenda procedimentos para minimizar a ocorrência de memórias falsas e de identificações equivocadas, e eles incluem gravar o reconhecimento de suspeitos e melhorar a instrução do júri.
Uma preocupação grande em relação à memória de uma testemunha ocular tem a ver com a relação tênue entre a precisão da memória de uma testemunha e sua confiança nela. Em geral, se você viu alguma coisa antes, sua confiança no fato de ter visto e sua precisão ao recordar o que aconteceu estão ligados: quanto mais você confiar na sua memória, mais terá certeza de que está certo. No entanto, pesquisas revelam nuances importantes a respeito dessa ligação.
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Num trabalho publicado em 2015, os psicólogos cognitivos Henry L. Roediger III e K. Andrew DeSoto testaram pessoas para ver se são capazes de se lembrar de palavras numa lista e o quanto elas confiavam em suas lembranças. Em relação às palavras que estavam mesmo na lista, quando as pessoas estavam muito confiantes em suas memórias, elas também foram precisas; alta confiança foi associada à alta precisão. Porém, quando as pessoas equivocamente se lembravam de palavras que eram similares às das listas, mas que não estavam nelas – uma memória falsa –, elas também demonstravam uma confiança alta. Ou seja, para memórias falsas, alta confiança estava associada também à baixa precisão.
Quando recordamos alguma memória, não estamos extraindo uma gravação perfeita de nossas experiências e executando-a palavra por palavra. Muitas pessoas acreditam que a memória funciona assim, mas ela não funciona.
Para complicar ainda mais, o conteúdo de nossas memórias pode mudar facilmente ao longo do tempo. Cerca de um século atrás, o psicólogo sir Frederic Charles Bartlett conduziu uma série de experimentos que imitavam o jogo do “telefone sem fio”, em que você sussurra uma mensagem para a pessoa mais próxima, então esta passa a mensagem para a pessoa mais próxima dela e assim vai. Ao longo da brincadeira, a história é distorcida: alguns elementos permanecem, outros desaparecem e detalhes completamente novos surgem.
Quando recordamos alguma memória, não estamos extraindo uma gravação perfeita de nossas experiências e executando-a palavra por palavra. Muitas pessoas acreditam que a memória funciona assim, mas ela não funciona. Em vez disso, nós estamos de fato sussurrando uma mensagem do passado para o presente, reconstruindo essa mensagem cada vez que a acessamos. Nós nos lembramos direito de vários detalhes, mas, quando as memórias se transformam, nós apenas “ouvimos” a versão mais recente da mensagem, e podemos supor que aquilo em que acreditamos hoje é a mesma coisa em que sempre acreditamos. Estudos descobriram que até as “memórias fotográficas” de eventos carregados de emoção podem ser distorcidas e imprecisas, mas nós nos agarramos a elas com toda a confiança.
Com cada recuperação de dados, nossa memória pode se transformar – e a nossa confiança nela também. É por isso que o trabalho da Academia Nacional de Ciências deu um aviso contundente às cortes para confiar em provas primárias e não em depoimentos dados na sala de tribunal: uma testemunha que identifica um suspeito sem muita certeza na delegacia de polícia pode, mais tarde, afirmar – sinceramente – que tem certeza absoluta de que o réu no tribunal cometeu o crime. Na verdade, o simples ato de descrever a aparência de uma pessoa pode mudar se você tiver de reconhecê-la mais tarde numa linha de suspeitos. Essa descoberta, chamada de “eclipse verbal” [verbal overshadowing], tem gerado controvérsias, mas foi confirmada recentemente num esforço coletivo de mais de 30 laboratórios de pesquisa.
A ciência que estuda as distorções de memória se tornou rigorosa e confiável o suficiente para ajudar a guiar políticas públicas. Ela também deveria guiar nossos comportamentos e ações.
No caso de Tyson, quando a evidência do erro dele se tornou inegável, ele não tentou ignorar a controvérsia. O astrofísico se deu conta de que sua memória fundiu as experiências de dois eventos marcantes que envolviam discursos de Bush. Ele provavelmente ainda se lembra da informação da maneira como a descreveu em suas palestras – mas, a favor dele, Tyson reconheceu que a evidência supera a experiência, e se desculpou publicamente.
A atitude de Tyson é bastante adequada, vindo de um cientista. Bons cientistas permanecem abertos à possibilidade de que estejam errados e deveriam questionar as próprias crenças até que as evidências se tornem esmagadoras. Seria sábio se todos nós fizéssemos o mesmo.
Existe uma virada final no episódio envolvendo Tyson. Anos antes de ele criar uma memória falsa sobre o que o sr. Bush disse acerca do 11 de Setembro, o próprio Bush criou uma memória falsa sobre o que tinha visto no 11 de Setembro. Como documentado pelo pesquisador de memória Daniel Greenberg, em mais de uma ocasião Bush se recordou de ter observado o primeiro avião atingir a torre norte do World Trade Center antes de entrar em uma sala de aula na Flórida.
Estudos descobriram que até as “memórias fotográficas” de eventos carregados de emoção podem ser distorcidas e imprecisas, mas nós nos agarramos a elas com toda a confiança.
Na verdade, ele foi avisado de que um avião havia atingido o prédio, mas ele não viu o ataque – naquele ponto, não havia nenhuma filmagem da aeronave atingindo a torre. Bush deve ter combinado informações que adquiriu mais tarde com traços deixados pela experiência que viveu de fato para produzir uma nova versão dos eventos, exatamente como Tyson fez.
E, assim como os detratores de Tyson presumiram que ele havia mentido de propósito, alguns críticos de Bush concluíram que ele estava inadvertidamente revelando a verdade – que sabia dos ataques de antemão.
Políticos são pegos com frequência criando memórias falsas sobre o passado, em parte porque as vidas deles são muito bem documentadas. A campanha presidencial de Hillary Rodham Clinton em 2008 foi marcada pela falsa memória que ela tinha de uma viagem à Bósnia como primeira-dama, em que teve de cancelar uma cerimônia comemorativa e correr para pegar o avião debaixo dos disparos de um atirador de elite. Como acontece com frequência, a memória dela foi um embelezamento de um fato real, um peixe que se tornou maior quando virou narrativa. Houve conflito na região, mas não perto o suficiente para se tornar uma ameaça. Nossas memórias tendem a se transformar para se adequar às crenças que temos sobre nós mesmos e sobre o mundo. Clinton viajou para lugares perigosos, mas no asfalto da Bósnia ela encontrou crianças e não armas.
Será que nossos heróis têm memórias frágeis? Tyson, Bush e Clinton são pessoas inteligentes e bem educadas. Falhas comuns de memória não revelam nada sobre a honestidade de uma pessoa ou sobre sua competência. Porém, a forma como reagimos a esses eventos pode ser reveladora.
Políticos deveriam responder como Tyson acabou fazendo: sem embromação, admitir o erro, observar que coisas assim acontecem, pedir desculpas e seguir em frente. O resto de nós também não está livre disso.
É um engano concluir que alguém deve estar mentindo ao defender uma memória falsa no momento em que é confrontado com evidências contrárias. Devemos ser mais compreensivos com os erros alheios e dar crédito quando esses erros são admitidos. Somos todos contadores de histórias e precisamos nos acostumar com isso.
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