Por que será que, como diz a expressão, é preciso “ter um norte” para se ter um rumo na vida? E se o norte, como inverteu o artista uruguaio Joaquín Torres García, fosse justamente o sul?
Desde que nos mudamos para Buenos Aires, tenho achado divertido desconstruir essa sentença. É que, às vezes, para encontrar a si mesmo num sentido mais profundo – e o digo sem medo de soar piegas –, vale a pena passar um tempo “desnorteado”, longe de casa e das certezas, num temporário exílio interior.
Ainda que um acordo entre os países do Mercosul tenha me garantido residência permanente na Argentina, gosto de pensar na impermanência dessa aventura. Porque nada nunca é definitivo.
Em apenas um semestre na capital portenha, nos transformamos tanto quanto nosso entorno. A gélida sudestada com que fomos recebidos deu lugar a um verão dos demônios, a era kirchnerista chegou ao fim, o metrô finalmente chegou à Recoleta, a flor metálica voltou a funcionar e três novos netos sequestrados pela ditadura foram encontrados pelas avós da Praça de Maio.
De nossa parte, também mudamos: do sexto andar de um minúsculo apartamento em San Telmo para uma casinha com pátio e terraza no bucólico e antiturístico bairro de Colegiales. E, quando cruzávamos a cidade dentro de um táxi com toda nossa mudança – quarenta e poucos livros, sete pares de calçados, uma cafeteira italiana e pouca coisa mais –, era inevitável pensar nos portenhos que em 1871 chegavam ao norte escapando da epidemia de febre amarela que assolava o sul.
Em Colegiales, compramos uma bicicleta usada e uma churrasqueira portátil, comecei a praticar ioga chinesa e me matriculei em um curso de cerâmica.
Enquanto dou forma a tigelinhas de argila, vou aprendendo sobre política e lunfardo argentino com minhas colegas aposentadas do bairro. Construir algo concreto e com as mãos, longe de operações cerebrais como ler, escrever e traduzir, é estar mais perto da matéria.
Mirar
Viemos a Buenos Aires para experimentar a vida no epicentro artístico e cultural da América Latina.
Do ponto de vista do autoconhecimento, porém, não seria tão diferente passar essa temporada em Agudos do Sul ou Santo Antônio da Platina.
A entrega ao desconhecido, a renúncia a certos comodismos e uma dose saudável de solidão têm sido valiosos presentes para quem, como nós, buscava algum nível de crescimento pessoal nessa viagem.
Nada como um território novo para limpar o olhar viciado do mundo e reaprender a observar – estar atento, para a filósofa francesa Simone Weil, era o oposto de possuir. E cá estamos, nessa espécie de pedagogia brâmane de olhar mais e ter cada vez menos – o que explica o fato de, em seis meses nessa cidade onde pululam livrarias, termos comprado nada mais que três livros. Três livros e um escorredor de macarrão.
Morar
Das pequenas transformações que alteraram completamente nossa rotina, morar numa casa depois de 25 anos vivendo em apartamento é uma delas.
Há uma poesia anódina em varrer as folhas do pátio, correr para tirar as roupas do varal e ver um tomate crescer num vaso para depois comê-lo com um tiquinho de sal e azeite de oliva.
Outra notável mudança: após uma década vivendo a dois, o preço alto do aluguel nos obrigou a dividir o espaço com um terceiro – no caso, um cineasta bigodudo de Istambul. Não estivéssemos em Buenos Aires – a cidade mais cosmopolita da América Latina, onde os imigrantes são 15% da população –, provavelmente não saberíamos que os turcos dizem “saúde” quando alguém sai do banho, que kuru fasulye é muito parecido com feijoada e que jamais se deve misturar peixe com iogurte – já melancia com queijo e presunto está liberado. Em nossa república tupiniturca são comuns cenas globais como dois curitibanos e um istambulense almoçando pasta italiana al dente ao som de um vinil do francês Charles Aznavour cantando em espanhol.
No entanto, nem tudo é um mar de rosas em Buenos Aires – nem no roseiral de Palermo. Viver na “Paris sul-americana” é conviver com drásticas variações cambiárias, cortes de luz em pleno verão, calçadas infestadas de bombas fecais caninas e serviços da pior qualidade – que nos tornaram especialistas em faxina doméstica, depilação no método roll-on e conserto de bicicletas. Na marra.
Sobre a suposta displicência do estilo de vida local, eis uma teoria talvez romântica: quem se importa em faxinar a casa quando se tem uma cidade vibrante lá fora, com cinemas de rua, festivais em parques e toda sorte de atrações acessíveis? E daí que os portenhos param o carro em faixa dupla, ouvem as mesmas músicas desde a década de 1980 e não ligam se a roupa está combinando? Há um milhão de coisas mais importantes, da física quântica à obra completa de Borges, do saxofone à culinária vegana. Questão de prioridades.
Mudar
Como as cidades, somos feitos de camadas sobrepostas: de passado, presente e futuro, de memórias e vestígios, de relações e de sonhos que nascem e morrem a cada dia. Um palimpsesto em eterna renovação.
Os historiadores dizem que Buenos Aires, embora tenha mudado quase por completo, ainda preserva em sua essência o plano de Juan de Garay, do século 16. Daí que uma cidade, como nós, nunca é igual, mas é sempre a mesma. E que cidades, também como nós, morrem quando deixam de se transformar. Cambia, todo cambia, cantava uma pré-socrática Mercedes Sosa. Porque, você sabe, ninguém entra no mesmo Rio da Prata duas vezes. Mas não se engane: assim como não há impressões digitais idênticas, tampouco existem duas Buenos Aires. Ou duas Curitibas.
Matraquear
Venho de um lugar onde se cala. Onde recomenda-se não falar com estranhos. Curitiba é de um silêncio daltoniano profundo, enquanto em Buenos Aires tudo é ruído. Estar nessa capital por onde circulam 12 milhões de almas tem sido uma experiência mais auditiva do que visual. Buzina-se por qualquer motivo, as avenidas são barulhentas e há música por toda parte – o que é evidentemente maravilhoso –, o portenho é intenso e verborrágico, por vezes redundante, tem prazer em enunciar, vocalizar as palavras. Uma informação que se pede na rua pode render 15 minutos de prosa. Para um tradutor, o som é uma disciplina cara que exige desvelo. Mas para nós, brasileiros, que falamos também pelo nariz, uma conversa mais demorada no castelhano portenho – idioma que se fala com a ponta da língua e o fundo da garganta – pode resultar um tanto cansativa. Nessa cidade superpovoada em um país deserto, tudo é extremo, até o falar. “Proporciona-me um verdadeiro prazer não encontrar outra resposta que o silêncio”, diz minha nova escritora preferida, Hebe Uhart, evocando sem querer o saudoso mutismo curitibano.
Maravilhar
Paisagens requerem observadores sensíveis. Quem compra um pacote turístico tem o desejo e a disposição de correr contra o relógio para ver o máximo possível. Com um morador local acontece o contrário: como não há pressa, corre-se o risco de não ver nada – cegueira muito pior que a mirada superficial do turista.
Em dez anos vivendo no Cristo Rei, não pisamos nem dez vezes na grama do Jardim Botânico.
Para um local, é mais difícil se manter um observador sensível. Até quando, vivendo em Buenos Aires, continuaremos a enxergá-la com olhos de encantamento? Como renovar esse pacto de amor à medida que o tempo passa?
Penso que conhecer suas histórias pode ser uma forma, não a única, de reconhecer seu valor. Mais ou menos como ocorre com as artes ou a observação de pássaros: necessitamos informações para saber diferenciar as espécies – as estéticas – e, assim, melhor apreciá-las.
Quanto mais conhecemos o território, mais profundamente nos relacionamos com ele. Ler uma cidade é um aprendizado tremendo.
Memorizar
É evidente que sentimos aquela palavrinha genuinamente brasileira tão difícil de traduzir. Temos saudades das pessoas, da nossa gata, de comer banana sem ter de importá-la do Equador, de flanar pela Rua São Francisco nessas noites de verão.
Às vezes, ao atravessar a 9 de Julio, a mais larga avenida do mundo, penso como seria incrível encontrar ali uma passagem secreta para a Luiz Xavier, a menor avenida do mundo. Mas estamos indo bem – pelo menos ainda não apelamos para as comunidades facebookianas de Brasileiros em Buenos Aires, que anunciam coxinha de frango com catupiry e Fandangos sabor presunto a 22 pesos o pacote.
No fundo, sinto que já estamos cruzando aquela zona temporal perigosa em que, ao voltarmos para lá, teremos saudade também daqui. Mas, ao contrário do conquistador espanhol Hernán Cortés, que ao desembarcar nesta margem do Rio da Prata ordenou queimar as naus para não poder se arrepender da empreitada, nós podemos voltar quando (e se) quisermos. Lembrar disso – e de que estamos a apenas 1.345 km de casa – é um alívio e tanto.
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