| Foto: /Felipe Lima

De repente, uma tarefa: escrever sobre os 50 anos do romance documentário “A Sangue Frio”, de Truman Capote (1924-1984). Há uns bons anos eu li essa obra-prima do new journalism, que o próprio autor chamou de “obra de não ficção”, marcando assim, mundo afora, todas aquelas produções híbridas que misturam os fatos e acontecimentos da realidade jornalística com as subjetividades e criatividades da literatura.

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Tratei então de reler o texto, quase no exato momento em que se anunciava o Prêmio Nobel de Literatura de 2015: depois de 63 anos, o prêmio chega novamente para a literatura não ficcional, ao ser atribuído à jornalista bielo-russa Svetlana Alexievich, praticamente desconhecida no Brasil. Dupla comemoração para aquela área de interface entre literatura e jornalismo que aqui no Brasil chamamos, de forma muito abrangente, de “livro reportagem”.

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Mas, antes de pôr os olhos, mais uma vez, na fria e seca descrição do impactante assassinato de quatro membros de uma típica família de fazendeiros, em 1959, na empoeirada cidadezinha do interior do Meio-Oeste americano, me vieram à cabeça as experiências em sala de aula com o livro de Capote.

Inicialmente por minha sugestão, mas também pelas escolhas dos próprios estudantes de Jornalismo, “A Sangue Frio” foi se colocando entre aquelas reportagens alçadas à categoria de “acima do bem e do mal” pelos alunos — atemporais, quase mitológicas, para os futuros jornalistas. Percebe-se isso ao ouvir frases admirativas aqui e ali, em rodinhas informais, além é claro de manifestações explícitas de meninos e meninas mais acostumados a surfar entre os fluxos e convergências das redes digitais do que se emaranhar nas linhas e entrelinhas dos livros de não ficção.

— Sabe o que eu acho, Dick? Deve haver alguma coisa de errado com a gente. Pra fazer o que fizemos.

— Fizemos o quê?

— Lá.

Trecho do livro “A Sangue Frio – O Relato Fiel de um Assassinato Múltiplo e Suas Complicações”, de Truman Capote (tradução de Ivan Lessa, Abril Cultural, fora de catálogo). Uma nova edição foi publicada pela Companhia das Letras em 2003, com tradução de Sergio Flaksman, disponível nas livrarias – ela tem 440 páginas e custa R$ 60.

“A Sangue Frio”, diz a lenda, narrada pelo próprio Truman Capote, nasceu da inspiração causada pela leitura de uma notícia curta publicada no “New York Times”, sobre o assassinato da família Clutter, em uma propriedade rural, próxima à Holcomb e Garden City, no Kansas, em 15 de novembro de 1959. A ideia de converter a notícia em um romance investigativo com peso literário tornou-se uma obsessão que acompanharia Capote pelos próximos seis anos de sua vida. Na época, tinha publicado romances e roteiros para cinema e teatro, colecionando dois prêmios e alguma atenção da crítica.

A história chegou ao público em quatro edições de 1965 da revista “The New Yorker”. A primeira edição americana no formato livro saiu, em seguida, em 1966, tornando o autor conhecido do grande público. Nos 50 anos seguintes, a reportagem literária ou o romance jornalístico, como queiram, passou a ser considerada a grande obra do escritor e o primeiro texto do movimento do novo jornalismo, que ocorreu na década de 1960 no meio intelectual de Nova York, apesar de livros documentários, marcados por incursões de estilo e forma literária, serem bem anteriores a esse movimento.

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No Brasil, o livro foi publicado em 1980 pela Editora Abril Cultural, na coleção Grandes Sucessos, com tradução de Ivan Lessa, ficando muito tempo com edição esgotada; mas, em 2003, a Companhia das Letras publicou o livro, incluindo-o na coleção Jornalismo Literário, com tradução de Sérgio Flaksman e posfácio de Matinas Suzuki Jr.

A reportagem, e suas licenciosidades literárias, também migraram para o cinema, pela primeira vez em “A Sangue Frio” (1967), dirigido por Richard Brooks, que tenta ser fiel à narrativa do livro; já em 2005, o diretor Bennett Miller lança “Capote”, centrado em como o autor produziu sua maior obra e no seu envolvimento além do recomendável pela ética com os dois bandidos; e, em 2006, “Confidencial”, de Douglas McGrath, investe na pretensa relação afetiva entre o escritor e seus personagens já presos e aguardando a execução da pena de morte. Há também adaptações para TV e uma graphic novel: “Capote in Kansas”, de autoria de Ande Parks e Chris Samnee (2006).

Truman Capote alegava ter memória eidética. 

Por quê?

“Muito detalhista.”

“Muito seco.”

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“Tão minucioso que se torna cansativo.”

Os estudantes de jornalismo repetem sobre o livro essas frases, como uma primeira impressão. Mas logo retornam com apreciações mais apuradas, pois ninguém fica imune ao jogo de envolvimento que Capote estabelece com suas “vítimas”, os dois assassinos, Perry Smith e Dick Hickock — ele se aproxima, cria intimidade, os enreda e, para além do livro, dizem as más línguas, chega a torcer pela chegada do momento de execução da pena de morte, como ápice “perfeito” para sua reportagem.

Nesse jogo em que as identidades dos criminosos já estão reveladas, Capote consegue prender a atenção do leitor ao longo da construção de suas vidas pregressas e de todo o processo judicial que os conduz à forca. Nesse percurso, além de representar a experiência de romance não ficcional levada em toda sua plenitude, o texto também apresenta um questionamento ético importante sobre a pena de morte e sobre várias ambiguidades do sistema judicial americano.

Capote não perde a mão na reportagem e segue a narrativa com precisão e frieza, característica do crime e dos criminosos. E é neles — sobretudo em um deles, Perry Smith, alma perturbada com uma infância marcada pelo vazio afetivo, com quem Capote mais se identifica — que repousa a fixação do autor. E o leitor prossegue em busca da questão central: por que Dick e Perry mataram o pai (Herbert), a mãe (Bonnie) e os filhos adolescentes (Kenyon e Nancy) de uma família sem piedade? Quais as razões psicológicas ocultas? Suas vidas desacertadas, antes do crime, podem nos responder o enigma?

Capote persegue e rastreia seus dois personagens em busca de uma resposta em sua infância, em sua vida amorosa, nos hábitos e costumes, em seus desejos e ambições frustrados, nos encontros e desencontros dos dois assassinos.

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As cenas anteriores ao crime, marco zero do livro, mesmo objetivas e diretas, mexem com o emocional do leitor ao incluir frases curtas – como “Era o seu último dia de vida” ou “Com esse vestido ela seria enterrada” – que acompanham as ações de fim de semana das vítimas antes do crime de domingo: fazer uma torta, guardar um vestido, ver televisão, fazer um seguro de vida...

Paisagem bucólica do interior do Kansas, nos EUA. 

A primeira fruição macabra — a cena em que uma colega de Susan descobre as vítimas assassinadas em um abrir sem fim de portas de quartos pela enorme casa — se desloca para a questão humana das motivações mais profundas para a prática de um ato radical para a maioria, mas banal para muitos, aqui representados pela dupla Dick e Perry. Há um momento em que Capote os descreve como “escovados e penteados, dois janotas ao encontro de duas moças (...)”, que partem para uma viagem de carro de 1.280 quilômetros que renderia 40 dólares, quatro vítimas ensanguentadas e, ao fim, a forca.

“Não matarás”, o quinto mandamento parece ser um desafio eterno para o ser humano. A contemporaneidade do livro está aí — desde sempre e assim sempre será. Não se pergunta quem matou, mas POR QUE MATOU? Quais as razões ocultas, que vão muito além das situações objetivas, imediatas, explicitadas — muito além dos casos e acasos, como o encontro de Perry Smith e Dick Hickock, em algum momento de sua carreira de pequenos golpes e roubos; e das (in)confidências de um companheiro de cela de Dick sobre a família Clutter, seu dinheiro guardado em um cofre em casa e a presença de uma menina de 16 anos (Dick era pedófilo e se envergonhava disso). O inspetor Dewey, mesmo após obter as confissões de Perry e Dick, não fica nunca satisfeito — o como e o porquê não satisfazem sua noção de um propósito racional para o crime, como o roubo ou a eliminação de testemunhas.

O crime, como coloca Capote, fora um “acidente psicológico”, um “ato impessoal”. O que torna ainda mais distante o entendimento da motivação, até mesmo para os assassinos: “Por que será que eu fiz isso (...). Não sei por que (...). Se eu os tivesse conhecido de verdade, talvez me sentisse diferente (...) Mas do jeito que as coisas aconteceram, foi como derrubar alvos num stand de tiro.”.

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Ao seguir a lei natural do jornalismo e da vida, de que por trás de toda matéria factual, de toda notícia e acontecimento, há um mundo a ser revelado, uma grande história a ser contada, Capote se torna o elemento que permite a mutação da notícia em romance — de não ficção. Torna-se o repórter escritor que possibilita a gênese da história com suas objetividades/subjetividades, detalhes/ampliações, explicitações/sutilezas, colocando em termos de narrativa a imensa humanidade que paira sobre a notícia. E também, é claro, sua “desumanidade”. Ele ainda abusa, segundo alguns críticos, de licenças poéticas e literárias, além de não ter registrado em lugar algum as informações das fontes, retendo-as na memória para jogá-las depois no papel, em um estilo de apuração hoje criticado.

Em um contexto amplo, a obra deságua em várias questões éticas que acompanham o repórter em ações dessa natureza jornalística: a aproximação excessiva com as fontes, estabelecendo um relacionamento dúbio, perigoso, arriscado, que deixa margem à discussão sobre as intenções reais de Capote. Ou na questão da espera para publicar o livro, aguardando o dia do enforcamento de seus personagens-confidentes, quase explicitando como esse fim foi conveniente para o autor. Há ainda quem diga que, para reconstruir o crime, Capote teve a ajuda fundamental de sua amiga e jornalista habilidosa Harper Lee (autora do livro “O Sol É para Todos”), que um mês após o fato viajou com ele para Holcomb em busca da grande história — e mesmo assim ela não recebeu os devidos créditos.

Ao fim, sabe-se que o autor se impõe mais do que seus “personagens” de carne e osso. Ele os transforma também em vítimas do sistema e reféns de suas condições de vida e, ao entrar na não ficção por meio de várias estratégias de conteúdo e estilo brilhante, Capote envolve, cria, reporta, denuncia, narra, busca suspense e reflexão, tudo simultaneamente.

De quebra, o livro ainda faz o leitor parar para pensar no nonsense da vida, junto com Herhart, um dos amigos do fazendeiro assassinado, que, ao ajudar a queimar as roupas de cama, travesseiros, colchões e pertences ensanguentados das vítimas, filosofa: “Como era possível tanto esforço, tanta virtude se reduzir da noite para o dia a isso: fumaça adelgaçando-se à medida que subia e era recebida pelo céu enorme e aniquilador?”.

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Myrian Del Vecchio é jornalista e professora da UFPR.