Quando tinha 13 anos, no começo dos anos 1990, eu costumava fuçar na coleção de vinis dos meus pais dos anos 60 e 70. Ainda tínhamos uma vitrola, e alguns desses discos eu colocava para tocar nela, principalmente os dos Beatles. Os maiores sucessos da banda eram impossíveis de não reconhecer, mas havia um número de canções que eram novas para mim.
Se eu fosse um adolescente em 2015, é possível que nunca tivesse descoberto a “Lovely Rita” ou nem mesmo conseguido pegar gosto pelos rapazes de Liverpool. Os discos empilhados do lado do aparelho, para todo mundo ver, seriam MP3s invisíveis num computador ou celular que não eram meus. Sua existência, assim tão próxima, teria sido completamente desconhecida para mim.
S. Craig Watkins, professor do departamento de cinema, rádio e televisão da Universidade do Texas em Austin, que estuda o comportamento dos jovens no tocante à mídia digital, disse que ele e sua família ouvem música em casa agora exclusivamente via streaming e que ele e sua esposa guardam os CDs velhos num armário raramente usado. Para sua filha adolescente, “aqueles CDs são, na melhor das hipóteses, decorativos”, ele afirmou.
“Não lembro de ela um dia ter se interessado pelo que tem lá”, disse o professor Watkins. “Mas posso imaginar que, quando ela for um pouco mais velha, eles possam ganhar significado para ela – que aqueles artefatos sejam uma forma de criar uma conexão conosco”.
Às vezes, porém, ele e sua filha discutem o que tem nas playlists de seus aparelhos.
Há várias vantagens em crescer ouvindo música por streaming, a acessibilidade sendo uma delas: com interesse o suficiente, eu poderia ter explorado, de graça, todo o catálogo dos Beatles na internet, muito além do alcance da coleção dos meus pais.
Mas com o nosso método de conversão de mídia (talvez motivado pela aplicação do método de arrumação KonMari), acabamos nos livrando dos objetos físicos. Só que isso teve um preço. Além do desaparecimento das caixas de vinis e porta-CDs, a perda dos livros e periódicos impressos pode ter repercussões significativas para o desenvolvimento intelectual das crianças.
É uma questão crucial a de se o que importa são os livros em si ou a cultura dos pais como leitores – acreditamos que a resposta esteja em algum lugar no meio
Talvez o argumento mais forte a favor de se encher a casa de livros em papel venha de um estudo de 2014 publicado no Social Forces, um periódico de sociologia. Os pesquisadores mediram o impacto que o tamanho das bibliotecas domésticas tem sobre o nível de leitura de alunos de 15 anos de idade em 42 países, prestando atenção em variáveis como classe social, ocupação e nível de escolaridade dos pais, gênero e o Produto Interno Bruto de cada país.
Depois do PIB nacional, a quantidade de livros em casa era o elemento mais importante para prever o desempenho de leitura dos alunos. O efeito mais forte surgia com bibliotecas de cerca de 100 livros, que resultavam em aproximadamente 1,5 anos a mais de desempenho de leitura em relação à escolaridade real (os benefícios começam a diminuir a partir de uma biblioteca de cerca de 500 livros, que é o equivalente a 2,2 anos a mais de educação formal).
O tamanho das bibliotecas é ainda mais importante do que a classe social. Nos Estados Unidos, quando o tamanho das bibliotecas era igual, os alunos que vinham do 10% das famílias mais ricas tinham apenas uma série a mais de vantagem em relação aos alunos do 10% das famílias mais pobres.
As implicações são claras: Ter livros em casa é uma das melhores coisas que você pode fazer pela educação dos seus filhos. Ajuda, é claro, que os pais leiam para os filhos e sejam eles próprios leitores também e não simplesmente comprem livros por metro como decoração.
“É uma questão crucial a de se o que importa são os livros em si ou a cultura dos pais como leitores – acreditamos que a resposta esteja em algum lugar no meio”, disse Mariah Evans, uma das autoras do estudo e professora associada de sociologia na Universidade de Nevada, em Reno. “Os livros são em parte um reflexo da inteligência”.
Embora o estudo não tenha levado e-books em consideração, já que eles ainda não têm grande disponibilidade em muitos países, Dra. Evans afirmou que em teoria eles poderiam ser tão eficazes quanto livros impressos para encorajar a leitura.
“Mas e aquela atmosfera casual de morar num mundo de livros e a sensação de ficar intrigado e querer puxar um livro da prateleira para saber como é?” ela se pergunta. “Eu creio que isso vai depender em parte do modo como os nossos aparelhos eletrônicos serão integrados no futuro”.
Ter livros em casa é uma das melhores coisas que você pode fazer pela educação dos seus filhos. Ajuda, é claro, que os pais leiam para os filhos e sejam eles próprios leitores também e não simplesmente comprem livros por metro como decoração.
Ainda não chegamos lá. A Biblioteca Familiar do Kindle permite que dois adultos num domicílio compartilhem conteúdo um com o outro e com até quatro filhos. Mas os pais devem selecionar explicitamente quais dos seus livros as crianças podem ler. E lá se vai a “atmosfera casual de morar num mundo de livros”.
No entanto, será que os pais vão se dar ao trabalho de liberar o acesso de seus livros mais recentes para um filho de, digamos, 9 anos de idade? É verdade que é improvável também que uma criança de uns 9 anos venha a querer de livre e espontânea vontade pegar um exemplar impresso de “Entre o Mundo e Eu” para ler, mas pelo menos a criança que veja esse volume na estante pode vir a incorporá-lo numa compreensão sobre o que significa ter uma vida intelectual. No formato de um e-book não-compartilhado, o livro nunca será visto, que dirá manejado ou, talvez, um dia, lido.
A função Home Sharing do iTunes é de uma inconveniência parecida, exigindo que o computador ou outro aparelho do outro usuário esteja ligado e o aplicativo aberto. O compartilhamento também precisa ser recíproco – o que, de quebra, não é necessariamente um incentivo para adolescentes incompreendidos.
Porém, o declínio do jornalismo em papel significa que milhões de crianças hoje tomam seu café da manhã num ambiente onde o único material de leitura disponível é o que elas mesmas trazem à mesa. Aquela criança de 9 anos hipotética pode não se interessar em ler um artigo de opinião sobre a Síria no exemplar do jornal da família, mas pelo menos vai ver a manchete e lembrar da existência do mundo exterior, para bem ou para mal. E um adolescente precisaria ser dos mais curiosos para ler um periódico adulto online durante uma refeição tomada com pressa antes de ir para a escola sobre qualquer assunto que esteja habilitado para leitura no aparelho.
A mídia digital nos treina para que sejamos consumidores de altas quantidades de banda em vez de pensadores meditativos. Músicas, artigos, livros, filmes – tudo isso nós baixamos ou consumimos via streaming de forma instantânea, depois terminamos (isso se não acabarmos distraídos pelo inventário infinito de opções oferecidas) e avançamos para o próximo item intangível na fila.
A mídia digital nos treina para que sejamos consumidores de altas quantidades de banda em vez de pensadores meditativos.
A atividade de fuçar nos artefatos físicos, como eu fazia com os discos do Beatles, é um trabalho de arquivamento e curadoria, que lhe obriga a examinar cada objeto devagar e talvez experimentá-lo e chegar, assim, a uma possível descoberta feliz.
Já descer a barra de rolagem numa lista de arquivos de um aparelho, por outro lado, é o que já fazemos sempre todos os dias, muitas vezes sem nem prestar atenção, em nossa busca para encontrar o mais rápido possível o que quer que estejamos procurando. Ver o nome dos Beatles numa lista de centenas de artistas no banco de dados do iTunes não é nem de longe tão empolgante quanto ter em mãos a capa do “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.
Considere a diferença entre ouvir música de forma digital em comparação com ouvir música num toca-discos ou CD. No primeiro, é mais provável que você só baixe ou coloque em streaming apenas os singles que você quer ouvir de um álbum. O segundo envolve um investimento maior – de adquiri-lo, mas também a energia de colocá-lo para tocar –, tanto que você tem uma chance maior de se comprometer a escutar o álbum inteiro.
Se eu tivesse só clicado na primeira faixa em MP3 do “Sgt. Pepper’s” em vez de tirar o disco do sleeve, colocá-lo no toca-discos e posicionar a agulha com cuidado em cima dele, eu poderia ter me distraído e clicado em alguma outra coisa muito antes de chegar nas músicas lado B como “Lovely Rita”.
Até o próprio Jeff Bezos, fundador da Amazon, teria dificuldade em defender o poder nostálgico de um arquivo de formato .azw do Kindle em comparação com um livro de capa mole toda desgastada. Arquivos digitais não são capazes de replicar a sensação de vivência de uma obra de arte amada. Para uma criança, o livro surrado de um dos pais é um sinal de uma mente em funcionamento e do significado pessoal daquele volume. Uma imagem nítida em JPEG numa prateleira virtual, no entanto, continua a mesma, não importa se o livro foi relido umas 10 vezes ou se nunca nem foi aberto. Isto é, se é que ele sequer foi visto.
Tradução de Adriano Scandolara.
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