• Carregando...
 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Nas colinas da região central da Califórnia, perto de Lompoc, numa ladeira que desce pela Santa Rosa Road, há duas vinícolas lado a lado. As propriedades da Sea Smoke e da Wenzlau parecem impossíveis de se separar uma da outra, ambas ocupando aparentemente um mesmo terreno contínuo. As parreiras crescem no mesmo solo e recebem o mesmo sol. No entanto, as mesmas uvas com apenas alguns metros de distância entre si acabam em garrafas de pinot noir que não têm quase nada em comum.

Os melhores vinhos da Sea Smoke vendem por mais de US$100 (R$ 400) a garrafa, e seu sabor intenso costuma atrair todo tipo de elogio dos enólogos. Mas Rajat Parr, o vinicultor que cuida das parreiras da Wenzlau – ex-sommelier sócio de duas marcas de vinho, a Sadhi e a Domaine de la Côte – não consegue entender por que alguém iria querer beber vinhos como esses. Parr acredita que o pessoal da Sea Smoke colhe as uvas muito tarde, quando já estão mais do que maduras, e o resultado é um vinho em que falta sutileza e frescor. “Os nossos vinhos já estão fermentando nos barris e nós já fomos para casa”, diz o vinicultor, “enquanto isso, eles não colheram ainda uma única baga que seja”.

“Não acredito nessa coisa de ‘melhor’– que as melhores uvas de lugares diferentes se unam para formar o ‘melhor’ vinho. Acho que a fabricação de vinho vai além disso.”

Rajat Parr vinicultor

A quantidade de açúcares, que determina a gradação alcoólica, aumenta conforme a fruta amadurece. Os vinhos de Parr são repletos de aroma e sabores que os seus admiradores comparam com coisas que você nunca ia associar com vinho, como o solo de uma floresta coberto de folhas. Para Parr e para um número cada vez maior de colegas que pensam como ele, essas nuances são impossíveis de se obter quando o vinho fica forte demais. Ele prefere uma concentração alcoólica de menos de 14% e muitas vezes bem abaixo disso, em contraste com os 15% ou mais que é o mais comum na Califórnia. Por isso, Parr faz sua colheita com uma precocidade quase herética.

Numa manhã bem cedo, Parr me levou para a vinícola La Côte, a vários quilômetros de distância do Oceano Pacífico. Enquanto passávamos entre os desenhos das parreiras, Parr me explicou que ele gosta que as peculiaridades do lugar – o folhelho do solo, o vento cortante do Pacífico – fiquem evidentes no sabor do próprio vinho. Ele odeia a ideia de misturar as uvas de melhor qualidade de vinícolas diferentes na mesma garrafa, que é o que muitos produtores fazem. Esses vinhos podem até ser bons, mas lhes falta profundidade e complexidade. “Não acredito nessa coisa de ‘melhor’– que as melhores uvas de lugares diferentes se unam para formar o ‘melhor’ vinho”, diz ele. “Acho que a fabricação de vinho vai além disso”.

A maioria dos vinicultores da Califórnia tenta produzir algo mais próximo de um Sea Smoke do que um Domaine de la Côte. Antes que o Napa Valley entrasse no mapa do mundo dos vinhos nos anos 80, os vinhos mais elogiados eram feitos em regiões – em sua maioria francesas – onde a umidade e o frescor do verão costumam comprometer o trabalho agrícola. As safras de destaque eram as dos anos mais quentes, essas ocasiões incomuns em que as uvas tinham condições para amadurecer plenamente antes da colheita. Na Califórnia, onde sol é o que não falta, é possível produzir vinhos de uvas maduras quase todo ano.

Osvalter Urbinati

A lógica de grande parte dos produtores californianos então foi: se vinhos de uvas maduras são considerados bons, logo o vinho de uvas no auge da madureza (ou mesmo um pouco mais do que maduras) deve ser ainda melhor. Esse salto lógico criou um novo vernáculo norte-americano para a produção de vinho, um sabor de fruta denso e opaco bem adequado ao gosto de uma nação de consumidores de Pepsi. Mais frutas doces. Mais glicerol, o que deixa o vinho mais encorpado na boca. Mais álcool. E, por consequência, mais prazer.

É claro que prazer é uma questão de opinião, mas há três décadas os gostos dos bebedores de vinho dos EUA foram moldados pela preferência pessoal de um só homem, Robert M. Parker Jr. Homenageado em 2013 pelo Hall da Fama das vinícolas da Califórnia, Parker foi coroado pela revista “The Atlantic Monthly” como “o crítico mais influente do mundo” e fez carreira defendendo justo o estilo de vinho de que Parr e seus colegas desdenham.

Ele lembra que, no começo dos anos 2000, tomou um syrah do Ródano na França que o deixou impressionado com suas notas de carne assada e solo recém-arado. Ele gostava da sensação da bebida na boca, seca e não encorpada.

Em 2011, reagindo a um mercado norte-americano que sentiam que era hostil a vinhos californianos que não fossem do tipo ultramaduro, Parr e Jasmine Hirsch, da Hirsch Vineyards, do condado de Sonoma, começaram a procurar membros para uma confederação de produtores de pinot noir chamada In Pursuit of Balance [Em Busca do Equilíbrio]. O grupo, que cobra uma anuidade de US$900 (R$3.600), conduz o que é basicamente uma campanha política em nome do autocontrole na prática da vinicultura. A maioria dos seus 33 membros – situados desde Anderson Valley, a 160 quilômetros de San Francisco, até Santa Barbara – fabrica quantidades modestas da bebida, entre 40.000 e 60.000 garrafas por ano, e não costuma ter um grande orçamento para marketing. Mas, ao entrarem no grupo, que realiza degustações em todo o país (e às vezes no estrangeiro), eles ganham o alcance necessário para atingir os consumidores provavelmente mais capazes de apreciar o seu produto.

Nos últimos meses, muitos desses vinhos começaram a aparecer nas adegas e cartas de vinho dos Estados Unidos. Em alguns restaurantes no Brooklyn e em certos bairros de San Francisco, por exemplo, eles são os únicos vinhos nacionais disponíveis. O sucesso desse grupo não-conformista, um tipo de guerrilha dentro das tendências californianas, já resultou em conversas cheias de ofensas nos fóruns da internet, bem como blogues e declarações no Twitter.

Em seu cerne, o tema do debate é o propósito filosófico de um vinho fino. Qual o dever dos enólogos? Apenas produzir bebidas que sejam deliciosas? Ou esse ideal deve ser mais profundo e estimulante intelectualmente? Os melhores vinhos são o equivalente de blockbusters hollywoodianos ou de filmes cult? E quem é que decide?

Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

No bairro de TriBeCa, na baixa Manhattan, de pé atrás de um átrio envidraçado de uma manhã de fevereiro, Parr inspecionava mais de mil taças de vinho, cada uma meio cheia de pinot noir. Era a quinta degustação anual do In Pursuit of Balance em Nova York, da qual participaram talvez uma centena de varejistas, jornalistas e sommeliers, bem como alguns consumidores que pagaram US$125 (R$500) cada para escutar diálogos sobre os níveis de açúcar, as melhores técnicas de desbaste e sobre a mentalidade borgonhesa.

Agora com 42 anos de idade, Parr passou quase duas décadas servindo vinho e montando cartas de vinho para os mais conceituados restaurantes dos Estados Unidos. Nascido Rajat Parashar em Calcutá, na Índia, ele anglicizou seu sobrenome como Parr e mais tarde se naturalizou como cidadão dos EUA. Mas nunca conseguiu engolir direito o vinho produzido no país. Ele lembra que, no começo dos anos 2000, tomou um syrah do Ródano na França que o deixou impressionado com suas notas de carne assada e solo recém-arado. Ele gostava da sensação da bebida na boca, seca e não encorpada. Sabia que essas eram as marcas dos vinhos das melhores regiões da Europa. Quando perguntou por que não faziam nada parecido na Califórnia, outro sommelier lhe disse que simplesmente não era possível.

“Isso ficou na minha cabeça”, diz Parr. “A Califórnia é um lugar grande. Como que não era possível?”

Ao dar uma nota precisa junto com o comentário, o crítico Robert Parker passa a impressão – de propósito ou não – de não estar meramente comunicando sua reação pessoal à experiência de cada vinho, mas quantificando seu valor intrínseco.

O In Pursuit of Balance é polêmico nos círculos dos enólogos. Até o nome em si é polêmico: dá a impressão de que os outros, fora do grupo, parecem não se importar que um único atributo de seus vinhos (a doçura, talvez, ou a gradação alcoólica) predomine sobre o resto. Consciente de que estar do lado dos intelectuais num debate contra o prazer puro faz o seu grupo parecer sem graça – “a elite antissabor”, como Parker os chama –, Parr tem vindo a público para passar uma imagem mais positiva. “Não é um movimento”, ele diz. “É só uma discussão entre amigos”.

Os membros do grupo apontam que a influência de Parker foi tão grande ao longo do último um quarto de século que ele acabou ativamente alterando as técnicas de vinicultura – não só no Napa, mas também em regiões que vão da Europa até a Austrália. Os produtores precisavam de acesso ao mercado norte-americano. E, para isso, precisavam de Parker.

Em 1978, Parker começou uma newsletter chamada “The Wine Advocate” [O Advogado do Vinho]. O nome brincava com a sua profissão na área jurídica, mas tinha um significado que ia além disso. Ele criou um sistema de pontuação de 0 a 100 e que lhe servia como se fosse um porrete. Os valores mais altos iam para os vinhos com o sabor que ele achava que os vinhos deveriam ter. E castigava os outros com notas lá por volta de 70 e 80, além dos comentários mordazes.

Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Hoje o “The Wine Advocate”, que tem cerca de 50.000 assinantes, fornece descrições detalhadas dos vinhos avaliados. Porém, ao dar uma nota precisa junto com o comentário, Parker passa a impressão – de propósito ou não – de não estar meramente comunicando sua reação pessoal à experiência de cada vinho, mas quantificando seu valor intrínseco. Para os consumidores norte-americanos, a ideia de que as qualidades de vários vinhos podem ser comparadas com facilidade acabou sendo irresistível. “As pessoas entravam nas adegas com o nome de um vinho e a nota de Parker e não diziam uma palavra sobre o estilo ou as características do vinho”, diz Michael Mondavi, filho de Robert Mondavi, responsável por disseminar a fama dos vinhos de Napa Valley pelos Estados Unidos. “Só porque ele atribuía uns dois dígitos ao vinho, eles compravam”.

No dia depois do evento em Nova York, peguei um avião para Londres para participar da Taste of Greatness Masterclass, que aconteceu no Salão da Corte Real de Justiça. Esse acontecimento, junto com um jantar à parte, de US$2.500 (R$10.000), num restaurante que tinha duas estrelas no guia “Michelin”, foi a parte europeia da turnê mundial do “The Wine Advocate”, uma série de eventos intercontinentais nos quais Parker partilha sua sabedoria com bebedores de vinho endinheirados.

Dez vinhos, considerados perfeitos ou quase perfeitos pelos críticos da “Wine Advocate” e validados pelo paladar de Parker, foram oferecidos aos seus 500 participantes, que pagaram o equivalente a US$700 (R$2.800) para degustá-los.

Em muitas das propriedades do Napa Valley que Parker ajudou a popularizar, as turnês e salas de degustação acabaram criando um negócio secundário bastante lucrativo.

Os vinhos representavam uma vasta gama de estilos. Ninguém podia reclamar que Parker apreciava apenas vinhos muito alcoólicos e pouco sutis depois de tomar o Latricières-Chambertin de Lalou Bize-Leroy da safra 2011 ou o Cos d’Estournel, de 1982. O Dominus do Napa Valley, por outro lado, era inegavelmente denso. “As pessoas dizem que não dá nunca para você dar uma nota 100 para qualquer vinho”, diz Parker. “Eu discordo completamente. Tenho muito orgulho de ter dado 100 para este”, afirmou. “Melhor não fica”.

Agora com 67 anos, Parker vendeu recentemente a “Wine Advocate” para um grupo de investidores de Cingapura, mas sua voz permanece incontestada. E ele reagiu com uma agressividade indisfarçável a esse aumento da popularidade dos vinhos menos alcoólicos – e à diminuição de sua própria influência – , com seus sabores menos intensos e imperfeições ocasionais.

Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Volta e meia, ele deixa extravasar sua raiva por Parr e seus simpatizantes. “Os movimentos jihadistas dos vinhos não-sulfurados, de uvas verdes e menos álcool, umas coisas insípidas promovidas pela polícia anti-prazer e anti-álcool, já demonstrou ter sido mais um movimento extremista e inútil com o qual ninguém se importou”, escreveu Parker.

Parr e Hirsch tomam o cuidado de não criticar Parker em público, mas não fazem qualquer questão de esconder o seu desgosto pelo tipo de vinho que ele representa. Ocasionalmente, as invectivas de Parker vão para o lado pessoal. “Ninguém que seja sério presta qualquer atenção a Raj Parr e seus fanáticos”, ele disse, “já que é óbvio que eles estão só tentando vender os seus próprios vinhos”.

Em muitas das propriedades do Napa Valley que Parker ajudou a popularizar, as turnês e salas de degustação acabaram criando um negócio secundário bastante lucrativo. Como muitas vinícolas dos membros do grupo, no entanto, a Matthiasson, de Steve Matthiasson, parece mais uma leiteria do que uma atração turística. Quando o visitei, nós nos sentamos numa mesinha bamba de fórmica do lado de fora de um paiol cheio de mobília jogada fora.

Trabalhando de vinicultor nas vinícolas em torno do Napa Valley, Matthiasson começou a engarrafar seu próprio vinho como uma ocupação secundária em 2003. Suas primeiras safras foram mal recebidas. Os restaurantes por pouco não o enxotaram da porta. “Tinha um tipo de sommelier velha-guarda que ficava ofendido com o que estávamos fazendo”, disse. “Alguns até gritaram comigo. Foi bem difícil para nós arranjarmos um espaço no mundo do vinho. As pessoas que bebem os vinhos do Napa Valley não gostavam dos nossos vinhos, e os que bebem os da Europa não vão querer chegar nem perto de algo que diga Napa Valley”.

“Ninguém está obrigando ninguém a comprar os nossos vinhos. O consumidor é quem faz a escolha.”

Doug Shafer vinicultor

Sem a sua afiliação ao In Pursuit of Balance e o acesso periódico de sommeliers curiosos que ela trouxe, seria bem difícil atrair clientes. “Eu tenho dois filhos para criar, por isso preciso que o negócio tenha sucesso”, ele disse. “Mas escolhi não me entregar e fazer vinhos que eu não quero fazer. Esse é o problema. Não é uma luta pela dominação do mundo do vinho – longe disso. É uma luta pela nossa existência”.

Depois do almoço, atravessei o vale rumo a Silverado Trail. Entre as parreiras, repousavam grandiosas criações arquitetônicas, que abrigavam algumas das mais prestigiosas vinícolas da Califórnia. O pessoal da Shafer Vineyards havia decantado dois vinhos para mim, os seus Hillside Selects de 2002 e 2010. Ambos tiraram nota 100 com Parker. Com a gradação alcoólica em exatos 15%, cada um deles fornecia aquele mesmo sabor intenso e textura leitosa que haviam enriquecido as adegas do vale. “Ninguém está obrigando ninguém a comprar os nossos vinhos”, me disse Doug Shafer. “O consumidor é quem faz a escolha. Eu tenho clientes a dar com o pé. Mas esses novos sommeliers do momento, eles não me dão a menor atenção”.

Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Mesmo com tudo aquilo de álcool, dava para sentir, com certeza, a presença do Napa Valley. Esses vinhos, me parece, não poderiam ter saído de nenhum outro lugar. Se, para Parr, esse é o teste do que faz um grande vinho, então eles passavam. Além do mais, eu não conseguia parar de ficar bebericando.

Não faz muito tempo que Parr me serviu um jantar em sua casa alugada em Santa Barbara. Com jazz tocando no aparelho de som, sentamos num terraço de frente para um jardim. Ele abriu uma série de garrafas de uns vinhos rarefeitos, incluindo um Château Magdelaine Bordeaux de 2000 e um Pio Cesare Barolo de 1985. Todos eles importados da Europa, eu percebi.

Depois de comermos, Parr me serviu os seus próprios vinhos. As várias safras da Domaine de la Côte me pareceram tão variadas que eu nunca teria nem como saber que eram feitas pela mesma vinícola. Um deles parecia ter um gosto mais mineral do que de fruta. Um outro era leve e refrescante. E um terceiro me pareceu virtualmente sem gosto. Como modelo de negócios, parecia cruel. Sendo a faixa de preço dos seus vinhos entre US$45 (R$180) e US$90 (R$360) a garrafa, Parr não poderia esperar dos consumidores que se orientassem por tentativa e erro para descobrir qual tipo eles gostam mais. Como que alguém pode ter qualquer ideia de qual estilo ele ou ela prefere?

“Nós não fabricamos os vinhos com estilo nenhum”, respondeu. “Eles são o que são”. Ele tomou um gole, e eu esperei que fosse continuar. A voz rouca de Louis Armstrong cantava “Mack the Knife”. Parr deu outro gole. Enquanto eu esperava, dei outro gole também. Depois de um tempo, me dei conta de que ele tinha terminado de ponderar a questão. Não ia falar mais nada sobre isso. O vinho em si era a resposta.

Tradução de Adriano Scandolara.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]