| Foto: Imagens: Reprodução/ Gesltalten

Eu achava a União Soviética um mundo perfeito. Tive uma infância superprotegida na República Socialista Soviética da Bielo-Rússia. Éramos parte de uma organização pioneira, usávamos gravatas tão vermelhas quanto a bandeira soviética e fomos ensinados a servir de exemplo para os outros: era preciso ajudar os fracos e cuidar dos idosos.

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A União Soviética desmoronou quando eu tinha 10 anos – se fosse adulta, entenderia que esse mundo estava longe de ser perfeito. A família de 15 repúblicas soviéticas não tinha fronteiras – as pessoas viviam e trabalhavam em qualquer lugar e todo mundo falava russo. Como viajar para fora da URSS era muito difícil, o homo sovieticus foi moldado por 70 anos atrás da Cortina de Ferro. Houve pessoas que fizeram carreira nas linhas do Partido Comunista, visões maniqueístas da história, propaganda e doutrinação perpetradas pelos três canais de tevê que existiam e por uma dúzia de jornais, discursos oficiais estéreis e lições de lealdade embaladas por multas e sentenças de prisão.

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A União Soviética abarcou uma quantidade grande de experiência para erradicar o analfabetismo e a fome, para construir cidades e estradas na Sibéria, promover educação fundamental, dar acesso às artes para todo mundo e lutar por uma sociedade sem classes. E tudo isso sem se preocupar com as consequências – sacrificando vidas humanas, esmagando destinos e sonhos. As pessoas estavam prontas para pagar o preço, pois sabiam que em troca o Estado atenderia suas necessidades básicas, garantiria empregos, atendimento médico, educação e pensões.

Mas, à medida que essa população numerosa era alimentada e educada, ela queria mais, queria consumir mais, queria menos interferência do Estado e menos cultura do medo... E foi nesse ponto que a URSS falhou e falhou espetacularmente. Seus sistemas político e econômico conseguiam proporcionar benefícios apenas para um círculo limitado de elites.

Companhia das Letras vai publicar quatro livros da escritora

Um dos papéis do Prêmio Nobel de Literatura tem sido o de revelar escritores importantes para o mundo.

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Nobel

A jornalista e escritora Svetlana Alexandrovna Alexievich nasceu em 31 de maio de 1948 em Ivano-Frankivsk, na Ucrânia. Hoje, ela vive na Bielo-Rússia. A Academia Sueca a escolheu para o Prêmio Nobel de Literatura de 2015 “por sua escrita polifônica, um monumento à dor e à coragem nos dias de hoje”. Por hora, nenhum dos livros dela foi traduzido no Brasil.

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A URSS se despedaçou muito rápido em 15 repúblicas. Como a da Bielo-Rússia, em que 80% das pessoas votaram a favor de manter o regime, mas as forças centrífugas eram muito fortes: a utopia desmoronou deixando para trás uma herança de lendas, mentiras e perguntas.

Svetlana Alexievich foi quem começou a analisar a União Soviética e o povo soviético ainda nos anos 1980. Outros escritores, como Solzhenitsyn e Shalamov, escreveram sobre os gulags enquanto Vasil Bykay abordou a Segunda Guerra Mundial. Mas o leque de temas de Alexievich é mais amplo e o estilo dela, único.

O método de trabalho da jornalista era o de fazer centenas de entrevistas – de 500 a 700 – com crianças, mulheres e homens; e demorar anos para completar um livro. Alexievich via cada história pessoal – de vida, amor, medo e dor – como a peça de quebra-cabeça. Reunindo peças suficientes, ela seria capaz de contar a história da utopia.

“Você precisa fazer as pessoas mergulharem nas profundezas delas mesmas”, diz a jornalista. Alexievich entendia que a arte falhou ao tentar entender várias coisas a respeito do povo soviético. Por esse motivo, quem deveria contar essas histórias era ele próprio.

Como alguém que viveu apenas a infância na URSS, consigo entender bem o fascínio de Svetlana Alexievich pelo projeto utópico do império soviético e entendo também o impulso de dar voz a várias gerações ignoradas.

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O primeiro livro dela, “A Face Desfeminilizada da Guerra” [numa tradução livre a partir do inglês “The Unwomanly Face of the War”], é sobre mulheres soviéticas que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial como atiradoras e pilotas de tanques. Mas apenas os homens podiam ser heróis soviéticos. Garotas apareciam como enfermeiras e médicas corajosas. Depois da guerra, aquelas que queriam se casar tinham de esconder suas medalhas e disfarçar seus ferimentos.

A primeira tiragem do livro foi enorme: mais de 2 milhões de exemplares. Aquelas a quem o livro deu voz foram as que mais criticaram o trabalho de Alexievich: elas queriam ser glorificadas; queriam que o mito soviético se estendesse a elas. A sociedade teve então de convencê-las de que não existe nada glorioso a respeito da guerra e da matança; e Alexievich ajudou a selecionar as palavras certas para descrever coisas bizarras que se tornaram normais durante a guerra e o regime soviético.

“As Últimas Testemunhas: um Livro de Histórias Nada Infantis” foi a segunda obra que trouxe à luz várias dezenas de relatos daqueles que tinham idades entre 7 e 12 anos durante a Segunda Guerra. Em vez de histórias soviéticas sobre crianças heroínas que ajudaram soldados, as reunidas por Alexievich eram relatos aterrorizantes de medo, miséria, fome e frio.

Livro

As imagens que ilustram esta página foram tiradas do livro “Iron Curtain Graphics – Eastern European Design Created Without Computers”, editado por Carla Duschka e Isac Ciprian (Editora Gelstalten, 212 pp., importado).

O livro seguinte, “Os Garotos Zincados”, reuniu episódios pessoais do envolvimento de dez anos da União Soviética com o Afeganistão. Alexievich falou com aqueles que lutaram no território afegão e com as famílias daqueles que não sobreviveram. Muitos disseram: você deve lutar contra ideias e propaganda, não contra pessoas, não são elas que tornam o mundo insuportável e assombroso; deixe as pessoas viverem em paz.

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Os meninos se chamavam “zincados” porque os corpos deles voltaram para casa em caixões de zinco.

“Enfeitiçados pela Morte” é a respeito de suicidas no exército pós-soviético. Histórias e mais histórias, todas elas contadas em primeira pessoa. Talvez nenhuma delas jamais tivesse sido publicada se não fosse por Alexievich.

Ela conquistou fama mundial com “A Oração de Chernobil – Crônicas do Futuro”. A explosão nuclear na usina de energia de Chernobil foi reconhecida pelas autoridades soviéticas semanas depois do ocorrido e apenas por causa da pressão internacional. Alexievich retratou pessoas tentando entender o inexplicável, o desconhecido e o invisível. E, mais uma vez, apresentou relatos assombrosos em primeira pessoa: “Eu, meus filhos mortos, minha mãe agonizando...”

O livro mais recente dela, “Tempo de Segunda Mão”, é uma tentativa de desmistificar o homo sovieticus por meio de monólogos de pessoas ouvidas em todas as repúblicas soviéticas fazendo referência ao passado: desiludidas, perdidas, traumatizadas pela derrota do projeto utópico da URSS. Essas pessoas não querem nenhuma reforma econômica, não querem capitalismo; elas preferem a lei conduzida com pulso de ferro e querem reviver a União Soviética.

A política interna e a externa da Rússia atual – com o conflito na Ucrânia, o envolvimento na Guerra da Síria, as relações se deteriorando com a Europa e os Estados Unidos – podem ser explicadas por essa nostalgia pós-soviética. Explicadas, mas não compreendidas: o homo sovieticus deveria apelar à consciência e reler qualquer um dos livros de Alexievich.

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Não acho que as pessoas ouvidas por Alexievich em “Tempo de Segunda Mão” consigam ser objetivas. Mas elas mostram como a coisa fica feia quando a história não quer se tornar história.

Em tempo: o próximo livro dela é sobre o amor.

Maryna Rakhlei é jornalista nascida na Bielo-Rússia, especialista no Leste Europeu. Ela trabalha para a fundação norte-americana German Marshall, em Berlim, na Alemanha.
Tradução de Irinêo Baptista Netto.