É lugar-comum a ideia de que a ficção permite quebrar tabus e falar de experiências pessoais que poderiam ser constrangedoras – quando não criminosas – sem atrair a censura da sociedade. Invertendo as coisas, seria possível dizer que os tabus e a censura encorajam a criatividade, de certo modo. Mas o que acontece quando desaparecem os principais obstáculos para a expressão livre e direta?
Os escritores, ávidos por encontrar uma forma de expressão para ideias e sentimentos que poderiam contrariar o status quo em que estamos imersos, muitas vezes inventam histórias bem diferentes das próprias biografias ou da situação política em que se encontram, mas que, ainda assim, reconstituem o jogo de forças, dilemas e problemas por trás de suas preocupações. “Serei incapaz, no fim, de mentir sobre qualquer outro assunto?”, diz Malone, o narrador idoso do romance Malone Morre, de Samuel Beckett. Ele faz a pergunta para si mesmo, falando sobre a própria vida, enquanto tenta e fracassa em inventar uma história que não será mais do que escapismo.
Pensemos nos últimos romances de Charles Dickens (1812–1870), A Pequena Dorrit e Nosso Amigo Comum, em que muitos personagens sofrem com o fardo psicológico de esconder um segredo profundo que jamais pode ser revelado. Será que Dickens tinha consciência de que estava reconstituindo as próprias angústias de tentar combinar a experiência de ser uma figura pública ao mesmo tempo em que mantinha relações ano após ano com uma jovem amante? Muito provavelmente. Ele reclamava para os amigos que as normas de propriedade não permitiam que falasse de partes importantes de sua experiência.
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O britânico Tim Parks é professor de Literatura e Tradução na Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de Milão, na Itália, e autor dos livros Meus Vizinhos Italianos e Uma Educação à Italiana , ambos publicados no Brasil pela Publifolha. Ele mantém um blog sobre livros e leitura, com textos em inglês, dentro da New York Review of Books : http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/
No final de Nosso Amigo Comum, ele desencadeia uma série extraordinária de eventos que permitem que um advogado case com a filha de um barqueiro e então mostra como esse acontecimento improvável seria discutido num jantar bem frequentado, em que todos os presentes, menos um, descrevem a união como grotesca e desonrosa. Os amigos próximos de Dickens teriam visto que ele estava refletindo sobre o que aconteceria se tentasse trazer sua querida amante Ellen para a luz do dia.
The New York Review of Books, ou simplesmente “Review”, surgiu em 1963 durante uma greve dos gráficos em Nova York, que deixou vários jornais fora de circulação. O editor Jason Epstein viu na greve uma oportunidade de ganhar dinheiro com os anúncios das editoras que continuavam a publicar livros e não tinham onde divulgar os lançamentos. Barbara, a mulher de Jason, e Bob Silvers eram os editores da revista que se tornou referência de coragem (por dizer verdades que ninguém mais dizia) na imprensa dos EUA e do mundo.
Mas Dickens viveu há 150 anos. A sociedade mudou. Desde então, tabus caem um atrás do outro. As pessoas hoje podem se orgulhar de ter raízes humildes. A homossexualidade não é mais algo a se esconder – pode haver até vantagens sociais e comerciais em um autor “sair do armário”. Relacionamentos amorosos e casamentos não são mais concebidos como contratos de propriedade, de modo que cada dificuldade e infidelidade precisem ser negadas a todo custo.
Em todo caso, está se tornando cada vez mais difícil negar qualquer coisa. As pessoas estão o tempo inteiro publicando fotos no Facebook e deixando rastros do que foi feito ou dito via e-mail ou Twitter. As vítimas de qualquer tipo de abuso estão mais dispostas a fazer denúncias. Com ou sem a Agência de Segurança Nacional (a NSA, dos Estados Unidos), o tipo de silêncio coletivo e noção de privacidade que permitiram a Dickens manter durante muitos anos a amante longe do olhar público é coisa do passado.
Como isso tudo afeta a criatividade? Os leitores já estão de tal maneira dentro dos mecanismos de funcionamento da ficção, e tanta coisa já foi escrita sobre o tema, que qualquer obra mais intensa sobre, por exemplo, sexualidade ou relações raciais acaba sendo algo que os leitores vão entender como a reconstituição do envolvimento do autor com o assunto. Não que as pessoas sejam tão incultas a ponto de imaginar que o que você escreve seja autobiografia pura e simplesmente. Mas acontece que elas já estudaram o suficiente de literatura para entender os processos em funcionamento.
Na verdade, a reflexão sobre os efeitos de disfarce de uma narrativa, sobre o modo como um certo conjunto de preocupações foi deslocado da realidade para a ficção, se tornou um dos principais prazeres da leitura de certos autores, em parte graças à crítica literária e à psicologia popular. Que tipo de pessoa exatamente são Philip Roth, Martin Amis e Margaret Atwood? E como as diferenças entre seus últimos livros sugerem mudanças sobre suas preocupações pessoais? A bem da verdade, a blindagem da ficção não existe mais, mesmo para aqueles que a procuram.
É natural que uma das respostas a isso seja o romance confessional, ou simplesmente autobiografia. A série Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, é um dos exemplos mais recentes: seis longos volumes de minúcias pessoais íntimas e por vezes escabrosas. Outros exemplos, ainda que estruturados de forma mais austera, são, discutivelmente o Origem, de Thomas Bernhard, cinco volumes autobiográficos breves, mas de uma intensidade quase insuportável, e a autobiografia em forma de romance em três volumes e em terceira pessoa de Coetzee, Cenas da Vida na Província (formado por Infância, Juventude e Verão).
Coetzee insiste que seus livros são “romances”, não livros de memórias, e, de fato, eles foram considerados romances nos prêmios pelos quais competiram. No entanto, o seu protagonista se chama John Coetzee e os primeiros anos de sua vida seguem a mesma trajetória que a do autor, e ele é apresentado sob uma luz que não lhe favorece em nada: na cama com a esposa de outro homem, ignorando uma moça que abortou o filho dele, e assim por diante.
Tais “confissões” teriam sido perigosas há cem anos. Ao chamar esses livros de romances, pode-se dizer que Coetzee está tentando se cobrir com uma folha de figueira. O mais interessante, porém, é que ele parece estar dizendo que a “ficção” desde sempre foi uma folha de figueira, mas a literatura pode também sempre ser desconstruída para chegar a um jogo de forças que, em essência, é autobiográfico, de forma que as obras cuja natureza biográfica é mais explícita não são mais reveladoras do que a ficção que veio antes delas. Ao reler o grande romance de Coetzee, Desonra, depois de Cenas, fica evidente a continuidade entre os dois projetos.
Mas uma outra resposta à perda do tabu, da censura, da privacidade, é os autores se afastarem por completo da narrativa e, em vez disso, refletirem sobre o próprio impulso que leva à narrativa, ou a narrar as coisas de certo modo. Isto é: um jovem escritor pode começar imitando os romancistas do passado que mais ama, mas então passar a questionar por que diabos eles contam as histórias desse jeito tão cheio de rodeios, com tanto esforço para esconder as coisas, quando agora não há mais essa necessidade, chegando ao ponto de concluir que emprestar as técnicas de, digamos, Thomas Hardy, ou mesmo Muriel Spark, simplesmente não faz mais sentido hoje.
Out of Sheer Rage [“De pura raiva”, em tradução livre, ainda sem edição em português], de Geoff Dyer é um belo exemplo disso. Dividido entre escrever um romance de autoria própria ou uma biografia de D. H. Lawrence, Dyer em certo ponto admite que não leu toda a ficção de Lawrence e que é provável que jamais a lerá; ele chegou ao ponto em que a vida de Lawrence e suas cartas para ele são mais interessantes do que a ficção.
Essa mudança de foco, que parece surpreender Dyer, ao mesmo tempo em que ele próprio se dá conta disso, se alinha com a perda do entusiasmo em escrever um romance próprio, de modo que, sempre que tenta começar a escrever o romance, ele se flagra preferindo refletir sobre D. H. Lawrence e, em particular, sobre Lawrence na medida em que ele se parece ou não consigo mesmo.
Como Dyer, porém, não é um biógrafo profissional e não tem paciência para compilar um trabalho tradicional de não ficção, o que é que ele iria escrever exatamente? A resposta é aquela mescla estranha de muitas memórias, biografia esburacada e, em certa medida, ficção, que é Out of Sheer Rage, um livro que sugere que as declarações não ficcionais diretas de D. H. Lawrence sobre si mesmo são mais envolventes, diretamente, do que as obras ficcionais para as quais precisava encontrar maneiras de expor suas preocupações mais íntimas diante do público.
Quem precisa dos romances, pergunta Dyer, se temos uma expressão tão vívida das preocupações e do caráter de Lawrence em suas cartas? E por que eu deveria criar ficções desnecessárias se um mundo alterado me permite agora expressar minhas próprias preocupações sem qualquer reticência que seja?
Dyer é um autor determinadamente da vanguarda, por isso não é surpreendente encontrá-lo na linha de frente dos desenvolvimentos do mundo literário.
Um romancista mais tradicional como David Lodge é outro caso. Em seu livro Lives in Writing [“Vidas na Escrita”, em tradução livre, ainda sem edição no Brasil], Lodge nos diz que, conforme vai envelhecendo, ele se vê cada vez mais interessado em “textos baseados em fatos” do que na ficção e prossegue oferecendo um relato da vida de 11 escritores, a maioria dos quais é romancista. Lodge já havia escrito relatos romanescos das vidas de Henry James e H. G. Wells e menciona o seu constrangimento pelo fato de que, no mesmo ano em que publicou seu romance sobre James, Colm Tóibín publicou um sobre ele também, e, no ano em que publicou um romance sobre Wells, A. S. Byatt publicou outro, do qual boa parte se baseava na vida de Wells. Temos uma tendência.
Lodge explica seu interesse em fatos, em vez da ficção, do seu modo típico, discreto, como meramente “uma tendência geral que se desenvolve nos leitores conforme vão ficando mais velhos, mas que parece ocorrer no nível da cultura literária contemporânea em geral”. Num tom bastante casual, sem quaisquer outras elucidações, isto é, Lodge sugere que, tanto como indivíduos quanto culturalmente, podemos esperar que os leitores se cansem da ficção. Era uma fase.
Contudo, os fatos pelos quais Lodge por acaso se interessa, quando nos voltamos aos romances mais recentes ou a Lives in Writing, são as vidas das pessoas que escreviam ficção – Kingsley Amis, Graham Greene, Muriel Spark, Anthony Trollope – e o que o interessa é como essas pessoas transformaram suas preocupações pessoais em romances. Ele está interessado na fase da qual ele mesmo parece estar emergindo, ou no processo da mudança que está ocorrendo.
Outra vez, como com Dyer, temos a sensação de que a situação que fez com que o romance tivesse a extrema importância que teve, como um espaço onde questões difíceis poderiam ser exploradas com impunidade, agora foi alterada de tal modo que o autor que se criou com esse modelo agora precisa refletir sobre o que fazer com sua ambição e criatividade.
Será que a ficção acabou sobrevivendo aos propósitos que a sustentavam? Essa é a questão que Lodge, Dyer, Coetzee, Knausgård e muitos outros autores estão propondo (vem à mente, em particular, o provocativo Fome de Realidade, de David Shields). É possível que estejamos rumando para um período em que, conforme o escritor “vai ficando mais velho” – como disse Lodge, tomando todo o cuidado para evitar a conotação positiva de “amadurece” ou a negativa de “caducar” –, ele vê que é cada vez mais irrelevante embarcar em outra obra longa de ficção que reformule conflitos e preocupações que o leitor vai, de todo modo, presumir que sejam autobiográficos. É muito mais interessante e emocionante confrontar de frente todo o dilema do viver e do narrar, neste mundo tão diferente em que nos encontramos agora, onde mais ou menos tudo pode ser dito sem se envergonhar.
Se isso resultará em livros melhores ou simplesmente diferentes é uma questão que os escritores e leitores terão que decidir sozinhos.