Na ficção científica Soylent Green, de 1973, dirigida por Richard Fleischer, uma Nova York com 40 milhões de pessoas, no ano de 2022, se debate para conseguir uma fórmula em tablete que serve para alimentá-las – a comida in natura está escassa, e somente os endinheirados conseguem comprá-la.
Ano 2015: apesar de o desperdício de comida e da fome serem problemas mundiais, ainda não chegamos a tal colapso. Mesmo assim, um empresário do Vale do Silício, Rob Reihart, resolveu apostar, há três anos, na produção de um shake sintético, batizado de Soylent, que pode, garante, substituir o arroz e feijão do dia a dia. A região na Califórnia, aliás, vem se tornando uma referência em pesquisa e desenvolvimento de alimentos considerados inovadores. Mas o Soylent – chamada de “comida do futuro” é, talvez, a invenção que mais interfere no nosso relacionamento com o ato de comer.
Todos os nutrientes necessários para o funcionamento do corpo, diz o criador, que é formado em ciência da computação e engenharia, estão na fórmula que é comercializada pelo site em pacotes para um mês ou mais – 28 “refeições” custam US$ 70 dólares. Ele vive da sua cria desde então, que substitui o almoço/jantar “burocrático” (mas, eventualmente, come comida que chama de “recreativa” com os amigos).
Na propaganda do produto, se enaltece o fato de se ter na mão uma fórmula balanceada em menos de três minutos. E lança um questionamento: “E se você nunca mais tivesse que se preocupar com comida?”. Nutrição, sem louça para lavar, ou cebolas para picar. Tentador, não?
“Comemos porque faz bem para o corpo, mas também faz muito bem para a mente. Não é à toa que sentimos prazer apenas ao ver um programa de culinária na tevê, ou ao sentir o cheiro da nossa receita favorita. Ficar sem sentir esse prazer na relação com a comida atrapalha não somente a nossa convivência social, mas também afeta a nossa saúde mental. Quem se alimenta somente para se nutrir está construindo uma relação completamente equivocada com a alimentação”
Talvez. Mas a resposta provavelmente é negativa. Esse tipo de fórmula se concentra apenas na funcionalidade do nutriente, o que não tem a ver com a alimentação como uma escolha. Afinal, lembra o colunista da revista Bom Gourmet, da Gazeta do Povo, Josimar Melo, que também é crítico de gastronomia do jornal Folha de S. Paulo, o ser humano tornou a alimentação uma arte.
O crítico, que considera um retrocesso a pergunta que o Soylent lança, de a comida ser uma “preocupação”, fala que “tratar a comida como simples ração é abrir mão de um diferencial que nos faz humanos”.
Existe, ainda, os pedidos do nosso organismo: no frio, por exemplo, sentimos mais fome e necessidade de alimentos ou bebidas que nos aqueçam, pois gastamos mais energia para manter a temperatura do corpo. “Tem hora que você quer salgado, depois doce, ou uma fruta. Ninguém come a mesma coisa todos os dias, por mais que goste. A monotonia alimentar não é saudável. Com esse tipo de shake, a escolha do que se quer comer é tirada”, comenta a professora do curso de Cuisine Santé do Centro Europeu, Iracema Bertoco.
O sabor é outro problema: Josimar provou e achou o gosto ruim, terroso. “Tem uma textura que gruda na língua. Eles mesmos fazem sugestões de colocar sabores – porque devem saber que o gosto é ruim. E, sem querer, com isso admitem que o gosto faz diferença. Que o sabor e o prazer fazem parte da experiência de comer.”
Outro questionamento é em relação à real qualidade nutricional do produto: nas primeiras fórmulas, muitas pessoas tiveram efeitos colaterais, como gases, por causa do alto teor de fibras (problema ajustado pelos inventores). “Como é feita por um engenheiro de TI, como ele é capaz de garantir que utilizou as formulações certas de cada vitamina na hora de elaborar o shake? Somente um farmacêutico é capacitado para fazer isso”, diz a nutricionista Marina Magalhães, autora e editora do blog Batata Frita Pode? , e mestre em Ciências de Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais.
O Soylent está muito longe da realidade. Pode ser prático em algumas situações, mas não pode substituir o ato de se alimentar, que vai muito além de simplesmente por energia para dentro do corpo. É muito reducionista. Achar métodos para unificar as pessoas é algo muito triste. É tirar a alegria. Num mundo como esse, eu não quero viver.
Moderno é natural
Respeitar os gostos, as tradições alimentares e a estrutura de cada alimento é o que existe de mais moderno, preconizado inclusive pela chamada alta gastronomia. “É um prazer descobrir uma fruta nova, uma receita. Cada vez mais estamos falando disso. De retornar à origem do alimento, de ter novas emoções a cada vez que se come um prato de comida”, fala o presidente do movimento Slow Food no Brasil, Georges Schnyder, que também é diretor da revista Prazeres da Mesa e fundador do Instituto Atá, junto com Alex Atala.
Georges faz um alerta: a base do produto de Rob Reihart é soja. “Além de viver em função de um único alimento ser ruim, hoje, cada vez mais há uma indústria muito pesada na alimentação, que trabalha contra o ser humano, em uma estrutura que acaba com a nossa biodiversidade. E o Brasil é o segundo consumidor de produtos transgênicos no mundo, cuja base é o milho e a soja. O frango, o peixe, o gado, toda a alimentação é com soja. Na verdade, o que o inventor está fazendo é colocar a soja diretamente na sua boca.” Tudo o que o slow food não prega: o movimento deseja resgatar a nossa relação com um alimento limpo, bom e justo.
Alimentar-se de um produto sintético também é um problema para o corpo – fora a absorção de nutrientes, que fica comprometida, é difícil alguém conseguir manter o hábito por muito tempo, acredita Marina. “Ou porque cansam do sabor dos produtos e da mesma forma de preparo, ou porque o organismo sente falta do processo de mastigação para ativar a saciedade e o prazer consequente da alimentação.”
R$ 9
Ou US$ 3 é o quanto custa uma “refeição” de Soylent. Atualmente, a empresa demora cerca de cinco meses para atender novos pedidos. A venda da fórmula é feita por uma assinatura online, e entrega as quantidades mensais.
Josimar concorda: “A mastigação é fundamental para o equilíbrio muscular e postural de todo o corpo.”
O médico nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), explica que a mastigação faz parte do nosso processo evolutivo. “Quando mastigamos, são emitidas sinapses para o cérebro já nos direcionando à saciedade. A partir do momento em que não mastigamos, logicamente, a musculatura não se contrai e o sinal para o cérebro não chega. Não é um produto recomendável em médio e longo prazo, com certeza.” Durval também não entende a comoção em torno do Soylent nem a alcunha de “comida do futuro”. “Ele é muito parecido com outros produtos de nutrição oral, que existem há muitos anos no mercado.”
Comer: socializar
A mesa é um gatilho certo para gerar a convivência, “é o último bastião da humanidade”, fala Georges, levando em conta uma sociedade contemporânea que prefere a comunicação virtual à real, e não desgruda de seus respectivos celulares. Logo, você imagina reuniões de família em torno da mesa para que cada um beba a sua dose de Soylent?
O ato de comer, lembra o presidente do movimento Slow Food Brasil, é individual. Por qual motivo, então, viver em torno de uma fórmula ou mecanismos rápidos?
Outro slogan do Soylent é: “Não perca tempo cozinhando”. Um contrassenso levando em conta, inclusive, políticas de saúde pública. O último Guia Alimentar para a População Brasileira , lançado no ano passado, preconiza que cozinhar, escolher os alimentos, preferir comprar de produtores locais e valorizar preparações regionais é uma das medidas mais eficazes para se manter saudável, com o peso em dia e longe de doenças crônicas.
Vale do silício
A região da Califórnia se tornou uma referência no desenvolvimento de novos produtos e fórmulas alimentícias. A ambição dessas empresas é criar alimentos à base de vegetais, medida que é considerada mais sustentável pelos criadores, e também pela ONU: de acordo com a organização, o setor de produção animal é um dos três maiores responsáveis pelos mais sérios problemas ambientais, em escalas global e local.
“Se não há tempo para cozinhar, é necessário se perguntar: e sobra tempo para quê? Às vezes, a gente coloca tantas coisas na frente e acha que tudo é uma obrigação. Todo o processo de cozinhar, de eleger um ingrediente, prepara nosso corpo para absorver melhor o alimento. É bem complicado ficar distante de sentir o aroma, o gosto”, diz o chef Renato Bedore, sócio da Vivah Gastronomia.
Essa dinâmica do “não tenho tempo para nada”, aliás, nos colocou goela abaixo um fast food cheio de açúcar, sal e gordura. O novo comportamento alimentar, baseado no produto processado, e não na comida natural, fez aumentar problemas como obesidade e doenças crônicas, afirma Renato.
Mas, existe o lado oposto: a preocupação excessiva com o que comer e o surgimento de diversos produtos e modismos (o Soylent, aliás, pode ser mais um) nos afastaram de um relacionamento tranquilo com a comida, diz a nutricionista Marina. “Se hoje temos maiores índices de problemas com a alimentação no mundo, isso aconteceu porque perdemos o respeito na nossa relação com a comida. Não entendemos mais a importância de comer e por que é tão bom fazer isso de maneira equilibrada”, diz.
Assim, o Soylent, cuja febre é mais concentrada nos Estados Unidos, e outros produtos do gênero como Herbalife (mais popular no Brasil), crê Marina, só nos afastam ainda mais de uma relação pacífica com a alimentação, a transformando numa vilã “que nunca deveria ter se tornado”. “ Não é a comida que escolhemos para ingerir que faz mal para a nossa saúde, mas sim a maneira como nos relacionamos com ela”.
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Abaixo, veja o trailer da ficção científica Soylent Green, de 1973, que retrata um futuro em que a comida natural é regalia de poucos.
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