Caetano Veloso e Gal Costa rumam aos 70 anos de idade. Ele os completa em 7 de agosto próximo e ela, apesar de quatro anos mais nova, parecia bem menos disposta a enfrentar o tempo e se renovar. Foram tantos os seus serviços prestados à música popular brasileira que, pensava-se, estava desfrutando uma semiaposentadoria, sem grande ânsia de se reinventar, ou se arriscar, em novos discos. Repousava em seu legado. Mas, eis que surge Recanto, álbum lançado nos últimos dias de 2011, que a recoloca na ordem do dia. E nos lembra que é uma das melhores porta-vozes dos projetos criativos de seu amigo compositor desde o surgimento da Tropicália, nos anos 60.
Com 11 canções inéditas, todas assinadas por Caetano, não é apenas mais um disco na carreira de Gal. É um de seus trabalhos mais vigorosos, porque a retira por inteiro da zona de conforto e a lança, aos 66 anos, às alturas da contemporaneidade, seja por conta das complexas texturas sonoras, muitas delas sintéticas e eletrônicas, ou das letras que, como quase todas as melodias e arranjos do disco, sugerem tensão, inquietude e urgência.
Os mais apressados já chegaram a sussurrar sem muita cerimônia que Recanto muito lembra Cê e Zii & Zie, mais recentes álbuns de Caetano, e que seria mais dele do que dela. Esquecem o essencial. Todas as faixas foram escritas tomando como medida a voz poderosa e singular de Maria da Graça Costa Penna Burgos.
Mas, apesar de ser uma aposta nos atributos da cantora, há muito conhecidos pelo seu compositor e produtor, Recanto é uma obra que olha para frente, a começar pelo time de músicos convocados, todos da chamada nova MPB: Moreno Veloso (filho de Caetano), Kassin, Pedro Sá, Davi Moraes (filho de Moraes Moreira) e Donatinho (rebento de João Donato).
Quem curte a Gal romântica e radiofônica de "Chuva de Prata", "Festa do Interior" e "Uma Tarde de Domingo", deve ficar bem longe de Recanto: é tudo menos um disco fácil, digerível. Já na primeira faixa, a linda e soturna "Recanto Escuro", em que a voz de Gal é emoldurada, sempre tensa, por ruídos que às vezes parecem eletrônicos e, em outras, meras interferências de rádio ou o chiado de um LP de vinil riscado. "O chão da prisão militar/ Meu coração um fogareiro/ Foi só fazer pose e cantar/ Presa ao dinheiro/ Mas é sempre o recanto escuro/ Só Deus sabe o duro que eu dei/ Mulher, aos prazeres, futuro/ Eu me guardei", diz a letra, que soa perturbadoramente autobiográfica.
E se for para buscar no repertório de Recanto uma faixa que consiga sintetizá-lo em forma e poesia, a música talvez seja "Autotune Autoerótico", que já no título brinca e ironiza o recurso eletrônico que permite corrigir e alterar a voz do artista, algo que uma cantora da estatura de Gal nunca precisou. Não para fins de correção, pelo menos. E, no entanto, o efeito, que de certa forma pode robotizar a emissão de quem canta, está lá, distorcendo e manipulando o tesouro maior de Gal. E também bate ponto nos irônicos versos de Caetano: "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar/ Pelos caminhos que levam à grande beleza/ Americana global, minha voz na panela lá".
Mas Recanto não é só exercício formal e experimentação sonora. Sem abrir mão dessas características, a eletrônica e quase dançante (aguardem um remix) "Neguinho" mostra que a verve política de Caetano segue afiada. Em um primeiro momento, pode até parecer que Gal canta sobre "o outro", a respeito "daquele lá", mas, aos poucos, a letra, cortante e pontiaguda, revela que a música fala de todos nós, no Brasil de hoje: "Neguinho compra três tevês de plasma, um carro GPS e acha que é feliz/ Neguinho também só quer saber de filme em shopping". Qualquer semelhança não é mera coincidência.