
O público que lotou pela primeira vez uma sessão de imprensa neste Festival de Cannes queria gostar de Bastardos Inglórios, novo filme de Quentin Tarantino. Às 8h30 da manhã, aplausos e gritinhos seguiram-se ao apagar das luzes no Grand Théâtre Lumière, maior sala do Palais, sede da mostra. A expectativa era grande, e o cineasta ofereceu ao público tudo aquilo que ele queria ver.
Faroeste, comédia, filme de Segunda Guerra e de gângster são colocados no caldeirão pop de Tarantino. O diretor parece não temer nada: descarta o ar trágico da resistência aos nazistas ao revestir tudo com o humor que lhe é peculiar. Um exemplo perfeito está logo no início no longa. Uma modesta casa no campo recebe a visita do terrível coronel Hans Landa (Christoph Waltz, excelente), que procura judeus escondidos por ali. Depois de vários minutos conversando em francês, o alemão vira para o camponês e diz: "Desculpe, estou me sentindo muito desconfortável falando francês. Imagino que o senhor deva falar inglês, não?". E assim passam a falar inglês.
A trama segue várias linhas narrativas, todas envolvendo a resistência ao nazismo, e se divide em capítulos. Há o esquadrão de soldados judeus americanos, liderado por Aldo Raine (Brad Pitt), encarregado de caçar, matar e escalpelar oficiais nazistas e que rende a maior parte das cenas sangrentas. É um grupo de bandoleiros, basicamente, e Brad Pitt faz um líder quase canastrão, como se fosse um (mau) ator dos anos 1940.
Em Paris, a judia Shosanna (Mélanie Laurent), usando nova identidade e atuando como proprietária de um cinema, é paquerada insistentemente pelo herói de guerra alemão Frederick Zoller (Daniel Brühl, de Adeus, Lênin), protagonista de um filme de propaganda nazista com sua história ele matou mais de 200 homens em três dias. Paralelamente, um oficial britânico (Michael Fassbender), crítico de cinema quando não está em guerra, e uma famosa atriz alemã (Diane Kruger), que passou para o outro lado, juntam-se ao grupo de Aldo Raine para tentar acabar com o nazismo. O cinema, usado por Joseph Goebbels como propaganda, aqui é capaz de resgatar o mundo das mãos de Hitler e companhia. "O poder do cinema seria capaz de derrubar o Terceiro Reich", disse o diretor, um apaixonado pela sétima arte, na entrevista que se seguiu à exibição.
Indagado se o filme que começa com o letreiro "Era uma vez, na França ocupada pelos nazistas,..." era uma fantasia ou um conto de fadas de vingança dos judeus, Tarantino respondeu: "Não definiria dessa forma 100% do filme, não colocaria nessa seção na locadora de vídeo, mas certamente você pode dizer isso. A Segunda Guerra não acabou naquele momento porque meus personagens não existiam. Se eles existissem, tudo seria plausível", afirmou. Mais tarde, ele disse amar seus personagens porque está na posição do Deus criador.
A entrevista, aliás, teve tanto humor quanto o filme. Tarantino ganhou beijinhos. Primeiro, de Christoph Waltz, depois de elogiá-lo. "Estava orgulhoso do personagem no roteiro, mas sabia que era preciso um ator que falasse bem todas as línguas (o coronel fala alemão, inglês, francês e italiano). Chegou um momento em que o filme quase foi suspenso. Uns dois dias antes de suspendermos a produção, apareceu o Christoph. E ele salvou o o longa."
Mais tarde, Tarantino foi beijado por Daniel Brühl, depois de dizer que "se a mãe e o pai do Daniel não tivessem se encontrado, eu não conseguiria o Frederick certo". Uma garrafa de champanhe foi aberta e taças circularam pela mesa onde estavam os atores e o diretor. O cineasta começou a explicar por que queria trabalhar com Brad Pitt e tudo se tornou uma piada. "Estávamos nos namorando havia tempos. Eu o olhava à distância, mandava bilhetinhos: Você gosta de mim?. Tinha certeza de que um dia trabalharíamos juntos, que um dia ele se encaixaria em um de meus filmes. Neste vi que tinha um papel para ele." O ator respondeu brincando: "Você tinha me conquistado no olá". Tarantino emendou: "No bon jour ". E Pitt terminou dizendo: "Je taime, je taime, je taime".
Tarantino também disse que foi sua grande paixão pelo cinema que o fez querer exibir o filme em Cannes. "Esse sempre foi o objetivo, o sonho. Não há melhor lugar para um filme no mundo, é o Monte Olimpo, a Olimpíada do cinema. Porque aqui temos a sensação de que o cinema realmente importa. Fora que a imprensa de cinema do mundo vem para cá", disse. "Eu não sou um cineasta norte-americano, faço o filme para o planeta Terra, e Cannes representa esse planeta."
Bastardos Inglórios é muito divertido, o cineasta pula de um gênero a outro com facilidade e continua talentoso ao filmar. Mas, no fim, fica a sensação de que tudo é apenas uma grande brincadeira, mais evidente porque se trata de assunto sério (tanto a resistência ao nazismo quanto a paixão do próprio Tarantino pelo cinema).
Comédias
Um mestre e dois novatos apresentaram suas comédias românticas em Cannes na noite de terça-feira. Alain Resnais, autor de obras como Hiroshima, Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad, apresentou em competição Les Herbes Folles, em que volta a dissecar os desencontros amorosos depois de Medos Privados em Lugares Públicos, só que, desta vez, em roupagem totalmente cômica.
Marguerite (Sabine Azéma) tem a bolsa furtada depois de sair de uma loja de sapatos. Georges (André Dussollier) encontra sua carteira jogada no estacionamento de um shopping e a devolve. Ela liga para agradecer quando ele já ficou obcecado por aquela mulher que conhece apenas pelos dados encontrados na carteira. Estabelece-se então uma relação maluca, marcada pelas surpresas. Os personagens parecem não seguir um roteiro: falam o que vier à cabeça, agem por impulso, jogando o espectador numa viagem sem guia, por caminhos imprevisíveis. Não há frases feitas, situações milimetricamente planejadas apesar de se imaginar que o roteiro, baseado no romance de Christian Gailly tenha sido obviamente muito burilado para chegar a essa forma.
Na Quinzena dos Realizadores foi a vez dos estreantes na direção John Requa e Glenn Ficarra surpreenderem o público, com I Love You, Phillip Morris. Jim Carrey é Steven Russell, que descobre ainda menino ter sido adotado e, rejeitado pela mãe biológica, tenta ser a melhor pessoa do mundo, frequentando a igreja, onde conhece a mulher, e tornando-se um policial. Depois de um acidente, ele resolve assumir sua homossexualidade. Primeiro, tem um caso com Jimmy, interpretado pelo brasileiro Rodrigo Santoro que aparece por poucos minutos, mas é um personagem importante na vida do protagonista. Vendo que manter o estilo de vida do namorado é muito caro, ele passa a aplicar golpes, até ir preso. Na cadeia, conhece Phillip Morris (Ewan McGregor), por quem se apaixona.
A ousadia do longa-metragem é não fazer concessões e ir até o final com suas propostas. Steven preza a liberdade acima de tudo e mente e engana até seu amado, se for preciso. Não é um personagem fácil de gostar, mas, graças à estrutura de I Love You, Phillip Morris e da atuação de Carrey, o espectador sai do cinema sem julgá-lo.



