Carlitos, Charlot, Charlie, the Tramp, der Tramp, il Vagabondo uma das figuras marcantes do século 20 apareceu nas telas pela primeira vez há cem anos, no filme Corridas de Automóveis para Meninos, no dia 7 de fevereiro de 1914, um sábado. Seu criador, Charles Chaplin, tinha então 24 anos. Nascido em Londres, em uma família pobre, abandonado pelo pai alcoólatra, com a mãe inválida por doença mental, lutou desde cedo para sobreviver. Começou a interpretar aos cinco anos; aos 13 já tinha largado a escola e aos poucos se revelava no vaudeville britânico. Com a companhia de comédias de Fred Karno, excursionou mais de dois anos pelos Estados Unidos. Na segunda turnê, Chaplin foi convidado para trabalhar em Los Angeles como ator de cinema, a 150 dólares por semana. Começou na Keystone, onde seu patrão, Mack Sennett, achou que o rapaz de 24 anos parecia jovem demais. Botou-o inicialmente a observar, para aprender o processo da filmagem. Em final de janeiro, fez sua estreia em Making a Living, que no Brasil se chamaria Carlitos Repórter, título oportunista, pois o Vagabundo ainda não existia. Fazia um tipo convencional, "de sobrecasaca, cartola e bigode-guidão". Detestou. Para seu segundo filme relata em sua autobiografia recebeu ordens do próprio Sennett, que estava com a atriz Mabel Normand num cenário de saguão de hotel, mordendo a ponta de um charuto: "Precisamos de algumas piadas aqui, disse, e então se virou para mim: Bote uma roupa de comédia. Qualquer coisa serve." Chaplin conta: "A caminho do guarda-roupa, pensei em vestir calças largonas, sapatões, uma bengala de bambu e um chapéu-coco. Queria que tudo fosse uma contradição: as calças bufantes, o paletó apertado, o chapéu pequeno e os sapatos grandes. Estava indeciso quanto a parecer velho ou jovem, mas, lembrando que Sennett esperava que eu fosse um homem muito mais velho, acrescentei um bigodinho, o que, imaginei, somaria idade sem esconder minha expressão. Não tinha nenhuma ideia do personagem. Mas, no momento em que me vesti, a roupa e a maquiagem me fizeram sentir a pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e quando entrei no set ele já estava totalmente pronto. Quando confrontei Sennett, assumi o personagem e me pavoneei, rodando a bengala e desfilando diante dele. Piadas e ideias cômicas passaram correndo pela minha cabeça."
Sennett reagiu às gargalhadas. Chaplin sentiu-se encorajado a explicar o personagem: "Sabe, esse sujeito tem muitas facetas, é um vagabundo, um cavalheiro, um poeta, um sonhador, um sujeito solitário, sempre na esperança de romance e aventura. Faria você acreditar que é um cientista, um músico, um duque, um jogador de polo. No entanto, também é capaz de catar guimbas de cigarro ou de roubar doce de uma criança. E, claro, se a ocasião exigir, vai chutar uma senhora no traseiro mas só em situação de raiva extrema."
O primeiro filme do vagabundo foi rodado naquele cenário: Carlitos no Hotel/ Mabels Strange Predicament o estranho apuro de Mabel, suspeita de adultério, tem a ver com uma troca de quartos. O segundo filmete de Carlitos trocou o estúdio pelas ruas: Kid Auto Races at Venice, mais precisamente uma Corrida de Automóveis para Meninos na praia de Venice, nos arredores de Los Angeles. Por um golpe de sorte, Corrida... foi para as telas dois dias antes de Carlitos no Hotel e o Vagabundo estreou num estilo que tinha tudo a ver com o personagem. O crítico e cineasta Amir Labaki dissecou o que chama de "santa inversão": "Carlitos debutou nas telas numa farsa cômica monopolizada pelo personagem e marcadamente metacinematográfica. Uma equipe de filmagens tenta documentar uma corrida infantil com pequenos carros, mas é atrapalhada pelo vagabundo, que busca de todos os modos impor sua presença diante da câmera, para crescente desespero do diretor (o próprio Lehrman). Numa estruturação visual avançada para as comédias do período, o filme se alterna entre o ponto de vista da câmera documental e o registro por uma segunda câmera da tourada envolvendo Carlitos e essa primeira câmera. Não poderia haver dispositivo mais cheio de simbolismos. É Carlitos anunciando sua chegada. É Chaplin buscando agressivamente o protagonismo. É o cinema ficcional (já aqui hollywoodiano) sobrepondo-se ao documental (na origem da invenção dos irmãos Lumière). E é também o cinema revelando suas entranhas, com a câmera filmando a câmera, o processo mesmo da produção no centro da narrativa."
Sucesso
Os dois filmetes podem ser vistos no YouTube. A partir daí seriam 26 anos de sucesso crescente para o personagem do Vagabundo, atravessando a Primeira Guerra Mundial e chegando até o início da Segunda. Ainda no final de 1914, Chaplin deixava a Keystone, passava a dirigir seus filmes e adquiria maior controle sobre a produção, controle que se tornaria total cinco anos depois, quando fundou a United Artists. Nos longas de Carlitos que encantaram plateias pelo mundo e pelos tempos afora, Chaplin superava-se a cada novo filme: O Garoto (1921), A Corrida do Ouro (1925), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936).
Encerra a série O Grande Ditador (1940), uma paródia impiedosa a Hitler, num momento em que o tirano nazista ainda não havia revelado toda a extensão de sua fúria destrutiva. Nesta obra-prima, Chaplin parodia Hitler e faz o Vagabundo: ainda no figurino tradicional, ele incorpora um barbeiro judeu. Curiosas coincidências cercam os dois: nasceram pobres e alcançaram proeminência mundial; Chaplin era só quatro dias mais velho que Hitler; e o bigodinho do Vagabundo foi criado quando Hitler ainda não dera a cara ao mundo. (Teria o Führer copiado o bigode do Vagabundo?) Chaplin começou a filmar O Grande Ditador em setembro de 1939, seis dias depois que a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha, e lançou-o em outubro de 1940. O discurso libertário ao final provocou controvérsia. O mundo mergulhou no longo pesadelo de uma guerra global e, quando veio a paz, o Vagabundo tinha tomado a estrada e dado as costas ao mundo para sempre. Como o próprio Chaplin dizia, "nada é permanente neste mundo cruel, nem mesmo os nossos problemas." E, "para rir de verdade você precisa ser capaz de pegar o seu sofrimento e brincar com ele."
O homem do chapéu-coco
O bowler hat, ou derby hat, foi criado na Inglaterra em 1849 por encomenda para o militar e político Edward Coke. Popular entre a classe operária na era vitoriana, foi adotado depois pelas classes média e alta. Símbolo das aspirações de riqueza das classes baixas, o chapéu-coco tornou-se acessório básico de comediantes do music hall, do vaudeville e do cinema, como Chaplin e Laurel e Hardy (o Gordo e o Magro). Tornou-se icônico no personagem Carlitos. (Woody Allen adaptou e erotizou o figurino em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa/ Annie Hall, com Diane Keaton: chapéu, camisa social, gravata, colete apertado e calças bufantes.)
A presença do chapéu-coco no século 20 foi tão marcante que mereceu até um livro, em 1993: The Man in the Bowler Hat: His History and Iconography. O autor, Fred Miller Robinson, iniciou sua pesquisa a partir de uma questão que o intrigava: por que Samuel Beckett especificou que os quatro personagens principais de Esperando Godot usariam chapéus-coco? Daí, seguiu para outras investigações que flagram o onipresente chapéu nas cabeças de escritores como Franz Kafka, Joseph Conrad, Oscar Wilde, T.S. Eliot e W.B. Yeats; das cantoras de cabaré de Berlim e do vilão de Brecht, Macheath; em uma cena erótica do romance de Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser; e nos delinquentes de Laranja Mecânica. E, também, nas pinturas de Seurat, Lautrec, Grosz e Magritte. Lautrec e Magritte usavam cocos. O belga foi obcecado pela figura do homem de terno e chapéu-coco, o "homem-massa" de Ortega y Gasset, já intuído por Edgar Allan Poe um século antes em O Homem da Multidão. Ironicamente, Poe não conheceu o chapéu-coco: morreu no ano em que ele foi criado, 1849. E me perguntem: por que o chapéu-coco se tornou o adereço obrigatório das índias aimarás e quéchuas dos Andes? Elas o adotaram a partir dos anos 1920, por influência dos britânicos que foram construir ferrovias na cordilheira. Ironia suprema: as equatorianas tecendo o legítimo chapéu panamá e portando na cabeça o coco, lá oferecido em todas as cores. Diz Robinson em seu livro: "Um puro objeto de design, invocando nada e admirado apenas por sua forma elegante e minimalista, o chapéu-coco combina com tudo, se adapta a tudo, e realiza o sonho do moderno, no fim da era moderna."
Todos amam o vagabundo
Carlitos tocou fundo não só o imaginário popular, como os maiores artistas e pensadores do seu tempo.
No Brasil, desde cedo, seu impacto foi imenso, principalmente entre os escritores. Carlos (o xará) Drummond de Andrade o exalta no longo poema de 1945, A Rosa do Povo:
"Para dizer-te como os brasileiros te amam/ e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece/ com qualquer gente do mundo/ inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos,/ olhos melancólicos,/ vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem nos filmes,/ nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia/ e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor/ como um segredo dito no ouvido de um homem do povo/ caído na rua." E termina: "Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode/ caminham numa estrada de pó e esperança."
O romancista e jornalista Carlos Heitor Cony escreveu longamente sobre Chaplin. No ensaio de 2003, Um Vagabundo no Século 20, ele faz uma ponte entre Carlitos e Ulisses: "Carlitos é um Ulisses sem glória, digamos, mais desesperado porque desprovido de um sentido. A peregrinação do herói homérico tinha um objetivo: tendia a uma evidente felicidade da qual já havia gozado parcelas. O seu retorno a Ítaca era-lhe um sonho lícito, uma ambição e uma luta duplamente lógicas. Penélope fiava e Ulisses se fiava nela: só isso daria uma motivação ou uma justificação à luta e ao retorno de Ulisses. Carlitos, ao contrário, não tem o que fiar e não se fia em ninguém. Vagabundo sem pátria, sem família, sem amigos, sem ideais, aspira à única felicidade que lhe é possível: o abrigo para mais uma noite, um prato de comida, um mínimo de segurança pessoal e de espaço físico para sobreviver num universo imenso e palmilhado sem sucesso pelas suas botas cobertas de pó, cujas pontas indicam, ao mesmo tempo, dois rumos antagônicos e vazios."
O americano Paul Auster, em O Livro das Ilusões, celebra a arte do cinema mudo e de Chaplin e seus colegas comediantes: "Inventaram uma sintaxe do olho, uma gramática do puro movimento e, exceto pelos trajes, pelos carros e pela mobília antiquada em segundo plano, nada daquilo jamais chegaria a envelhecer. Era pensamento traduzido em ação, a vontade humana expressando-se através do corpo humano, e era para toda a vida."
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