Precursor do realismo mágico, estilo literário mais latino-americano, o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) avisa no prólogo a O Reino deste Mundo que o relato que se segue "foi estabelecido sobre uma documentação extremamente rigorosa" que respeita a verdade histórica dos acontecimentos, mas que aquela trama seria impossível de se passar na Europa, pois o que seria a "história da América toda, senão uma crônica do real maravilhoso"?
E assim ele amplia o alcance da lenda para cunhar uma ficção sobre a independência do Haiti capaz de misturar para sempre fantasia e realidade.
A conquista da soberania da próspera ilha de Hispaniola por ex-escravos que expulsam as tropas francesas é resultado de uma das mais instigantes histórias de independência das Américas, por seu pioneirismo e pela crença de que a primeira rebelião negra na ilha, ainda no século 18, foi precedida por um ritual de vodu em que os escravos firmaram um pacto com o demônio.
Em Carpentier, o relato toma o partido dos negros ao tornar o protagonista, o escravo Ti Noel, simpático ao leitor. De moleque a idoso demencial, ele testemunha o furacão revolucionário que varre a ilha.
É seu tutor na vida, Mackandal, quem solta as amarras do vodu e envenena as casas dos senhores, para depois sumir e voltar na pele de animais. O clima se assenta só o suficiente para outro escravo, Bouckman, liderar a primeira revolta armada, que desestabiliza o governo europeu e da qual Ti Noel toma parte.
Vem da própria França o fermento para o passo seguinte: a Revolução Francesa de 1789 estimula o ideal da abolição igualmente em Paris e em seu reino d´além mar. E, assim como no país de Luís XVI, será sangrenta a rebelião que culmina com a independência da ilha em 1804.
Com habilidade e prosa otimamente traduzida por Marcelo Tápia, Carpentier resgata personagens deixados páginas e décadas antes para lhes dar o devido lugar na História. É o caso de Henri Christophe, cozinheiro no início do livro e monarca do reino do norte do Haiti no final, o primeiro a ser coroado no Novo Mundo.
Os trabalhos forçados impostos à população e a megalomania que se seguem dão uma triste explicação para a destruição da economia do país, que nunca mais se recuperou e, no início deste ano, foi devastado por um terremoto.
Íntimos
A ligação da ex-colônia com a França tem uma bonita metáfora no escravo Solimán, que serve a irmã menor de Napoleão Bonaparte, Paulina, quando esta segue o marido ao Haiti (então "São Domingos") para expulsar o rebelde Toussaint Louverture.
Apaixonado pelas formas da ama, o negro se desespera quando, anos depois, morando com a nova família que o emprega em Roma, encontra no Palácio Borghese a Venus Victrix que Antonio Canova esculpiu tendo por modelo a desnuda Paulina. Solimán crê que a estátua fora criada sobre o cadáver da amada. GGGG
Serviço
O Reino deste Mundo, de Alejo Carpentier. Martins Fontes, 136 págs., R$ 24,90.
Fim do ano legislativo dispara corrida por votação de urgências na Câmara
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Frases da Semana: “Alexandre de Moraes é um grande parceiro”
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais