Reencontro Hermeto Pascoal já com uma provocação: "E aí, Campeão, veio tocar no Rock in Rio?" Na verdade, ele era a atração principal do Sesi in Jazz um show grátis ao ar livre no último dia 14, em palco montado no Largo do Machado, no bairro do Catete. No camarim, meio constrangido, peço a Hermeto que pose para uma foto com a máscara do V de Vingança. Justifico: estamos em pleno território Black Bloc, é do Largo do Machado que sai a maioria das passeatas de protesto que sacodem a cidade desde junho. Hermeto que sabe levar a mídia cumpre as ordens do fotógrafo. Enfatizo: "Afinal, você é a Baderna do Bem, não?" Lembro a origem da palavra, em meados do século 19, quando estudantes manifestaram nas ruas com entusiasmo exagerado a sua paixão pela bailarina italiana Maria Baderna, que se apresentava no Rio, e foram chamados de "baderneiros." Lembro também a origem do nome do Largo: nenhuma homenagem a Machado de Assis ou a qualquer outro Machado (citam um oleiro, dono daquelas terras), mas a um açougue local que ostentava sobre a porta o emblema de um machado. A vocação rebelde do lugar também é representada pelo Café Lamas, favorito de comunistas, artistas como Niemeyer e Portinari, e dos presidentes Getúlio Vargas e JK.
Hermeto veste o chapéu de fibra favorito, uma camisa estampada em tons vermelhos, amarelos e laranja (parecem papoulas estilizadas), os longos cabelos brancos caindo em rabo-de-cavalo. Sentados face a face no camarim-contêiner, ele oferece um vinho um Merlot chileno e brindamos com os copos de plástico. Entra o filho Fábio, percussionista da banda, e abre um presente, pássaros made in Taiwan movidos a pilha, com a gravação de cantos múltiplos e maviosos. Tudo a ver com Hermeto, que na infância fazia pífanos de cano de mamona de jerimum e passava horas tocando para os passarinhos na sua Alagoas natal. Nascido há 77 anos em Olho dÁgua das Flores e criado na Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, o Bruxo ganhou a cidade grande (São Paulo-Rio) e depois ganhou o mundo.
Seu habitat, nos últimos dez anos, é Curitiba; seu pouso, Santa Felicidade. Em 2002, conheceu a cantora gaúcha de formação clássica Aline Morena e foi amor à primeira vista (ou audição, no caso). Foi o casamento do Chimarrão com Rapadura, título de show e álbum. (Há três anos comemoraram com o show e CD Bodas de Latão.) Aline surge no camarim ao vivo e em cores, com sua beleza morena num vestido justo vermelho vibrante. "Benzinho, traz um salgadinho pra mim," pede Hermeto. A bandeja de belisquetes à sua frente é inútil, protesta ele, que sofre de diabetes e só come aquilo que não lhe faz mal. Aparece também o neto, filho de Fábio, um rapagão afetuoso que pede a bênção ao avô.
Maestro
Conversamos sobre nossa amizade de 34 anos, iniciada em julho de 1979 no voo Rio-Paris-Genebra, a caminho de Montreux, onde Hermeto faria história na Noite Brasileira com Elis Regina. Do camarim entreouvimos os sons do quarteto de saxofones que abre o show, o Saxophonia: seu mentor, Idriss Boudrioua, também pediu a bênção ao Bruxo antes de subir ao palco. "Summertime", "Round Midnight" e "Night in Tunisia" se sucedem na polifonia dos dois altos, tenor e barítono, este soprado por Sueli Faria. Mesmo ouvindo à distância, Hermeto registrou tudo: durante sua apresentação, alertou a rapaziada dos saxofones: "Tomem cuidado, senão a moça do barítono engole todos vocês..."
Um show de Hermeto Pascoal é sempre um happening audiovisual. Às vezes ainda chega um "foca" e pede a relação das músicas que ele vai tocar. "Meu filho, não tem listinha, não. Tem até música que nem nome tem... Eu decido na hora." E o som começa a rolar o "som da surpresa", no melhor espírito da improvisação do jazz. A raiz, é claro, está fincada no universo nordestino, nas bandas de pífanos e nos forrós, processada pelos teclados eletrônicos do Bruxo, que toca e rege a banda com a maestria de um regente de sinfônica. Aline com seus trinados superagudos, Vinícius Dorin nos saxofones e flautas agilíssimos, Fábio Pascoal com seu arsenal de percussões e o ex-genro de Hermeto, Márcio Bahia, na bateria. No baixo, Itiberê Zwarg, veterano hermético de mais de 30 anos de estrada. É pra lá de hora e meia de show, com o desfile da maravilhosa família musical de Itiberê, incluindo Ajurinã Zwarg (bateria), Mariana Zwarg (sax e flauta), Carol Panesi (trompete e violino), Carol dAvila (sax e flauta). No bis Hermeto "quebra tudo" com uma sanfoninha e Aline o faz o ritmo tamanqueando num estrado.
Na plateia, uma quantidade de jovens, alguns mesmo podiam ser os Black Blocs da passeata da véspera, sem máscara e sem capuz. Pergunto a uma garota de vinte e poucos anos se não gostaria de estar no Rock in Rio. Com um não enfático, ela diz que prefere estar ali mesmo. Na descida do palco, a caminho do camarim, os músicos formam uma roda e ficam a brincar com um riff de forró encantado que parece nunca acabar. Por fim, todo mundo se abraça em círculo eu entro na roda também e profere os três gritos de guerra ritualísticos dos encerramentos do Hermeto. Dou um abraço no Bruxo e lhe desejo um bom regresso à sua Santa Felicidade...
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