São Paulo – Homem branco, heterossexual, intelectualizado, sem deficiências físicas ou doenças crônicas, membro da classe média e morador de grandes centros urbanos – não, não se trata de um anúncio para relacionamentos, mas o perfil principal das personagens contemporâneas do romance brasileiro, segundo uma pesquisa realizada em Brasília.

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Durante vários meses, a partir de 2003, a professora Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, comandou uma equipe de alunos que, debruçada sobre diversos livros de autores nacionais, conseguiu moldar o personagem mais comum da literatura brasileira.

A pesquisa fez uma espécie de recenseamento das personagens dos principais romances publicados no Brasil entre 1965-1979 e 1990-2004 pelas editoras mais importantes dos dois períodos: Civilização Brasileira e José Olympio, para o primeiro intervalo, e Companhia das Letras, Record e Rocco, para o segundo. Foram estudadas, ao todo, 1.754 personagens de 389 romances, escritos por 242 autores diferentes. "Nosso objetivo foi comparar a época atual com o período marcado pela ditadura militar", comenta Regina. "Daí a ausência dos anos 1980, que poderão inspirar uma outra pesquisa."

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O perfil dos autores se aproxima da dos personagens: em sua maioria homens, brancos, moradores do Rio de Janeiro e São Paulo e com profissões já ligadas ao domínio do discurso, como jornalista e professor universitário. "Dados importantes para se entender o enfoque do conjunto das narrativas atuais", comenta Regina, para quem a literatura é mais um discurso na formulação da ideologia de uma sociedade.

"O romance brasileiro possui como chão o Brasil contemporâneo. Ou seja, nosso universo literário é bastante limitado e excludente, assim como é reduzida a variedade de perspectivas sociais entre nossos escritores." É o que explica, por exemplo, a pequena representação das personagens femininas, porcentagem que é menor no período 1990-2004, quando as mulheres aumentam sua participação apenas na posição de narradoras, mas são menos protagonistas das tramas do que antes.

Uma das justificativas, no entender da pesquisadora, foi a eclosão do feminismo – apesar do aumento no número de escritoras, os homens sentiram-se retraídos. "Houve um certo constrangimento e os autores entenderam que a mulher poderia ela mesma dizer o que pensava, o que provocou um recuo na quantidade de personagens." Ou seja, o romance brasileiro hoje conta com mais autoras e, ao mesmo tempo, elas se sentem mais à vontade para criar personagens do sexo masculino.

Entre 1965-1979 e 1990-2004, os pobres perdem espaço no romance brasileiro, que se concentra ainda mais nas classes médias e, ao mesmo tempo, dá mais espaço a personagens das elites econômicas. "É importante notar como a literatura se distancia dos problemas sociais, ignorando também os negros e os homossexuais", comenta Regina. "E, quando esses aparecem, são de forma estereotipada, o que aproxima o romance da telenovela." A pesquisadora, que contou com uma bolsa do CNPq, notou ainda a ausência de características que marcam profundamente a rotina do brasileiro: quase não há, por exemplo, citações sobre futebol, carnaval e religião. Assim, apesar de ser muito referencial (o Brasil retratado é o atual) o que lhe confere um caráter realista, o romance traz personagens pouco realistas.

"É como se o cenário das histórias fosse uma reprodução fiel da realidade, enquanto as figuras que ali se situam não são." Há, é claro, exceções, mesmo que na valorização de detalhes. Sérgio Sant’Anna, por exemplo, sempre revelou a intenção de trabalhar em vários planos além da simples representação do mundo; Milton Hatoum ocupa-se dos problemas enfrentados pelos imigrantes na Amazônia; João Gilberto Noll preocupa-se também com os homossexuais; e Ferréz retrata o cotidiano de bairro pobre.

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"São exemplos preciosos, pois o estilo literário hoje tem uma outra dinâmica, apresentando diferenças que podem influenciar a literatura de autores brancos, enriquecendo-a", conta Regina, que percebe as mesmas características no cinema nacional, pesquisa agora em andamento. "Já vimos 150 filmes e o resultado, por enquanto, é semelhante: os personagens são, na maioria, homens brancos de classe média", conta ela, que já concluiu como o tempo verbal das falas reforça as diferenças sociais. "Os personagens negros falam apenas no presente, enquanto os brancos referem-se também ao passado. É como se o branco pudesse pensar, e o negro, apenas agir."