Talvez a frase mais memorável dos debates presidenciais de 2016 seja a de Donald Trump para descrever Hillary Clinton depois do comentário que ela fez a respeito de suas declarações de renda.
“Que mulher desagradável” foi incorporada imediatamente ao léxico nacional, servindo de inspiração para fantasias feministas de Halloween, camisetas e outras quinquilharias. Os liberais destacaram o comentário não só por acharem sua conotação sexista, mas porque era o comentário típico de um homem cujos discursos, entrevistas e tuítes não podem ser considerados exemplos de diplomacia lincolniana. Mesmo ao desejar feliz Ano Novo aos conterrâneos, citou “meus muitos inimigos e aqueles que me combateram e perderam tão feio que não sabem nem o que fazer”. O tuíte recebeu bem mais de 300 mil curtidas.
Nos EUA sempre se viu muita grosseria e crueldade; aqui, as campanhas políticas são eventos tradicionalmente amargos, com todo tipo de troca de difamação, mas os norte-americanos progrediram muito desde George H.W. Bush (contrariando seus pedidos de uma nação mais gentil) e o uso de expressões pitorescas para se referir a Bill Clinton e Al Gore, em 1992 (”bozos”) para a lista imensa de afrontas via Twitter atual; dos presidentes anteriores pegos xingando no microfone aberto para o fascínio do recém-empossado, que alegremente grita ofensas em comícios.
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Apesar dos esforços para diminuir o discurso de ódio, erradicar o bullying e aumentar a tolerância, uma cultura da grosseria se espalhou de tal forma que a maldade é recompensada rotineiramente e a decência e a civilidade são simplesmente deixadas de lado.
“Desrespeito gera desrespeito”
Quem se opõe a Trump também pode ser mesquinho; basta ver os comentários tóxicos resultantes de qualquer um de seus tuítes. O “delete sua conta” que Hillary Clinton postou, em junho passado, foi o mais retuitado entre os dois candidatos. Embora não tenha chegado a ser considerado um esculacho, inclusive até contido (o tuíte foi usado para responder a um que a chamada de “safada”), o comentário não foi exatamente exemplo de superioridade que a também democrata Michelle Obama ensinou durante a campanha.
Nos círculos liberais, é comum ridicularizar o cabelo e tom de pele de Trump nas referências a ele – que, é verdade, tem um histórico de atacar os outros baseado na aparência física – de uma forma que geraria verdadeiro furor se aplicada da mesma forma a Hillary.
Apesar disso, as contas de Trump nas redes sociais certamente estimulam hordas de simpatizantes a fazerem comentários parecidos, sem medo das consequências. Como Meryl Streep deixou claro no discurso de agradecimento que fez na cerimônia do Globo de Ouro sobre as palavras e atos do presidente, “Desrespeito gera desrespeito”.
Crueldade casual
Porém, Trump é menos facilitador-chefe e mais sintoma de um ambiente tipo “vale-tudo” que valoriza as ofensas. O humor, é claro, é refúgio dos que se sentem desprestigiados e desrespeitados, mas há uma diferença de teor e objetivo entre a ironia que destrói qualquer hipocrisia e seu primo mais fraco: o sarcasmo isolado e fatalista no melhor estilo adolescente.
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As redes sociais tornaram comum a crueldade casual – e quem suprime o “casual” da expressão está apenas dando vários passos repulsivos à frente dos outros. Esses trolls geralmente se comportam melhor no mundo real, porém, não só por medo das repercussões e de serem desmascarados ou, quem sabe, graças ao senso de humanidade estimulado pela empatia de uma conversa cara a cara; pode ser que não tenham ou não saibam o que é o “mundo real”, ou seja, um senso mais forte de comunidade, tendo por isso problemas para se relacionarem com os outros.
Declínio da civilidade
Andrew Reiner, professor de Inglês da Universidade Towson que ministra um seminário chamado “Mister Rogers 101: Why Civility and Community Still Matter”, atribui grande parte do declínio da civilidade, especialmente entre os jovens, ao estilo de vida do norte-americano, em relativo isolamento. A maioria de seus alunos conta que mal conhecia os vizinhos durante a infância, corroborando pensadores como Robert Putnam que, em seu livro de 2000, “Bowling Alone”, alegava que o engajamento cívico está diminuindo. Consequentemente, Reiner acredita que eles têm pouca experiência em resolver conflitos com pessoas com quem têm que achar uma maneira de se dar bem.
“Civilidade implica na ideia de que vocês nem sempre vão concordar, mas, ainda assim, têm que fazer a coisa funcionar. Temos medo de que nossas ideias se choquem com as dos outros, mesmo que, no final das contas, estejamos todos torcendo pela mesma coisa”, filosofa.
Isso leva a um círculo vicioso no qual os colapsos da civilidade e da comunidade reforçam um ao outro.
“O pessoal acha que por discordar de alguém não pode gostar desse alguém; por que então se dar ao trabalho de ir a uma reunião de bairro se já sabe que vai discordar dos outros?”, explica.
Reiner também já estimulou atos de cortesia básica na existência cada vez mais digitalizada e mais engajada com o próprio celular, não com outras pessoas. Em uma das tarefas que propôs, seus alunos tiveram que tentar aplicar atitudes educadas à moda antiga, realizando pequenos atos aleatórios de gentileza e comendo com estranhos.
“Trata-se de tentar ir além da própria insegurança e superar a possibilidade de rejeição, que nunca tem que acontecer na nossa vida on-line. Eu reintroduzo o conceito do risco social, que até pouco tempo atrás era a norma, ensinando como se sentir pouco à vontade e reaprendendo a habilidade de conversar cara a cara com alguém.”
Poder absoluto
Embora a internet receba grande parte da culpa por sabotar o hábito das boas maneiras, a verdade é que outros elementos da cultura popular não estão em um nível muito melhor: na estação de metrô do meu bairro havia dois pôsteres, um ao lado do outro, anunciando os programas “Graves” (sobre um ex-presidente) e “Those Who Can’t” (uma comédia sobre professores), ambos mostrando situações ligeiramente implícitas de pessoas mostrando o dedo do meio. Depois da eleição, olhando para Nick Nolte em frente à bandeira norte-americana, com o selo presidencial escondendo a mão em posição ofensiva, já não achei mais tão chocante o fato de saber que, em breve, Trump ocuparia o Salão Oval.
E o suposto empregador usando todo seu poder sobre os empregados é uma das principais características dos reality shows; foi ali que Trump criou sua marca, em 14 temporadas da NBC, já treinando os espectadores para considerar uma personalidade tempestuosa e polêmica como a sua em uma figura comum e admirada nos EUA de hoje. Shows de talentos e competições existem há tempos, mas as eliminações costumavam ser mais gentis – ou, no caso de “The Gong Show”, pelo menos mais engraçadas – do que apenas ouvir um “Você está demitido!”, “Você é o elo mais fraco” ou recebendo as críticas cáusticas de Simon Cowell nos comentários após a apresentação.
Como ficou provado na série “Real Housewives”, a resolução de conflitos na calma não dá boa audiência. Até as disputas de preparação de bolo tem briga até o fim.
Caça às bruxas
Em vez de buscar o conforto dos rostos conhecidos de famílias fictícias, amorosas e companheiras de “The Brady Bunch”, “Cheers” e “Friends”, as pessoas agora querem a companhia de famílias supostamente reais batendo boca ou conhecidos de programas no estilo documentário, talvez como consolo por provavelmente terem que assisti-los sozinhas, em um laptop pequeno ou no celular.
“O pessoal prefere ver reality shows a ter o trabalho de se envolver na comunidade e na própria família”, constata Reiner.
Muitos críticos de Trump traçam paralelos entre os dias de hoje e a Alemanha da década de trinta, mas quando se trata de falta de civilidade e do 45º presidente, uma época mais semelhante pode ser os EUA dos anos 50 e a caça às bruxas comunistas, principalmente uma frase do advogado Joseph N. Welch, de 1954, nos inquéritos de McCarthy. (O principal conselheiro do senador Joseph McCarthy foi Roy Cohn que, mais tarde, veio a se tornar amigo íntimo e sócio de Trump.)
“O senhor não tem um mínimo de decência?”, Welch perguntou a McCarthy depois que esse alegou que um dos advogados de Welch era comunista.
É uma pergunta que certamente muitos gostariam de fazer a Trump – e toda uma parte da população, homens e mulheres grosseiros e maldosos, deveria fazer a si mesma.
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