O tablete de chocolate vinha numa embalagem marrom. Ao abri-la, estava embalado em papel alumínio. Atrás dele, havia um cartão que trazia, de um lado, a imagem colorida de um animal; de outro, a silhueta da mesma imagem para ser colorida. O sabor do chocolate não era diferente dos demais. Chocolate ao leite, como convinha ao público infantil. Este era “Surpresa”, uma das marcas de chocolate vendidas pela Nestlé no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990. A “surpresa” se referia ao animal ilustrado no cartão. Poderia ser um tigre, um leão, uma garça ou até mesmo um dinossauro. Ninguém sabia qual seria até que desembalasse a barra.
Antes de “Surpresa”, a ser relançado pela Nestlé para a Páscoa de 2017 em formato de ovo de chocolate, houve “Lollo”. E, antes de “Lollo”, “Kit Kat”. “Surpresa” é mais um (chocolate) na lista de marcas do passado que voltam à ativa para agradar um público que anseia por lançamentos nostálgicos. Produtos que eram comuns no passado e que deixaram as prateleiras das lojas por razões comerciais mas que encontram sobrevida quando as crianças de ontem se tornam os adultos de hoje.
Doença ou solução?
A palavra “nostalgia”, etimologicamente, é formada pelos termos gregos nostós (regresso à casa) e álgos (dor). Ou seja, o sentimento de tristeza causado no indivíduo pela distância de um lugar, pessoas ou coisas. Seu significado é “o estado de profunda tristeza causado pela falta de algo”. O sentimento que representa nossa incapacidade de recuperar o passado, de que não podemos “ir para casa” ao sinal de dificuldades em nossa vida presente. Nostalgia não é, necessariamente, sentir falta do passado efetivamente vivido, mas do passado que idealizamos em nossa memória.
A natureza trágica da nostalgia já fez com que ela fosse tratada como enfermidade por muitos anos. Inicialmente, como remonta a origem do termo, nostalgia era a doença provocada pela saudade patológica de casa. Foi apenas no fim do século 18, a partir do trabalho do filósofo alemão Immanuel Kant, que a nostalgia passou a ser relacionada não à questão espacial, mas à temporal: ao contrário de um lugar, não conseguimos regressar ao tempo. “É o distanciamento com o passado que purifica a realidade do que ele realmente foi e faz com que ele pareça estável, coerente e a salvo das complicações do presente”, escreve a professora do Departamento de Inglês da Universidade de Toronto, no Canadá, Linda Hutcheon, especializada em crítica e teoria literária.
“A nostalgia pode nos ajudar a superar desafios psicológicos, como a solidão ou o senso de que a vida não tem sentido”, afirmou o professor de Psicologia da Universidade de Southampton, na Inglaterra, Tim Wildschut, coordenador de um grupo de estudos sobre o tema, em entrevista a Nicky Spratt, do site inglês The Debrief. “Pessoas que passam muito tempo longe de casa experimentam com frequência solidão e tristeza. Solidão e tristeza podem desencadear nostalgia em uma tentativa de contrapor esses estados negativos”, disse.
Clássicos
Essa é uma das razões porque o relançamento de um simples chocolate, cuja aparência e sabor pertenciam somente às memórias de quem o experimentou décadas atrás, causa tamanho furor no público hoje.
Mas a onda nostálgica não vive somente na indústria alimentícia. Outros segmentos têm apostado na simpatia do consumidor por produtos antigos descontinuados com frequente sucesso. Um dos exemplos recentes foi o anúncio feito pela Nintendo do lançamento de um “novo” console NES de 8 bits, o popular Nintendinho dos anos 1980, agora em tamanho miniatura, com 30 jogos na memória, chamado “NES Classic Edition”. Também no segmento videogames a Tec Toy anunciou recentemente o lançamento do Mega Drive Edição Limitada, a versão do console da Sega em seu design clássico, mas com 22 jogos na memória e uma entrada para cartão de memória.
A fabricante de brinquedos Estrela também deve lançar uma linha especial de brinquedos de sucesso nos anos 80, como o boneco Falcon, em março próximo.
A questão no relançamento dos consoles de videogame é que praticamente todos os jogos disponíveis para ambos nunca deixaram de existir em emuladores ou consoles virtuais. Quer dizer: o consumidor do novo Nintendinho não quer ter esse console simplesmente porque ele é capaz de rodar os jogos antigos, mas porque ele emula a experiência completa dos antigos videogames, conectados a televisões por cabos precários e com joysticks pouco ergonômicos. No caso do Mega Drive, o console sequer deixou de ser fabricado pela Tec Toy no Brasil desde seu lançamento. A única “novidade” é o relançamento com o design clássico.
Retro-branding
Não é coincidência que tantos produtos do passado estejam ganhando vida nova na atualidade. O mercado já descobriu há algum tempo que a Geração Y, ou millenials, tem um gosto forte por “sentir saudades de algo o qual mal viveu ou evitava viver”. Generalizando, millenials, os nascidos no início dos anos 1980 até meados dos anos 1990, veem o mundo antes do 11 de setembro como uma “era da inocência”, quando o bicho-papão era o hoje sepultado bug do milênio. O evento do ataque às Torres Gêmeas coincide com a entrada dessa geração no mundo adulto e a consequente perda da inocência.
“Não deveria ser uma surpresa que a Geração Y está escavando a nostalgia no meio de uma severa recessão econômica”, diz o escritor Jeff Gordinier, autor do livro “X Saves the World”, não publicado no Brasil, que analisa a década de 1990 como a formadora do caráter da Geração X, que antecedeu os millenials, em entrevista ao “The New York Times”. “A nostalgia conforta as pessoas e os millenials provavelmente desejam conforto agora”, completa.
Esse desejo de conforto está para a publicidade como o sangue derramado no mar está para um tubarão. Daí nasce o conceito do retro branding, a renovação ou relançamento de uma marca de produtos ou serviços de um período histórico atualizada a padrões contemporâneos de performance, funcionalidade e gosto.
“Tradicional e melhor”
Ao contrário de seus antecessores, a Geração X, ou os pais da Geração X, os baby-boomers (nascidos no pós-guerra), os millenials não sentem saudades “dos bons e velhos tempos”. Anseiam sim por “redefinir uma contrapartida para o atual desenvolvimento da sociedade que não agrada os consumidores jovens”. Com o retro branding, os novos produtos não são modelos “novos e melhores”, mas “antigos e melhores” ou “tradicionais e melhores”.
Estas foram algumas conclusões a que a relações públicas Júlia Nogueira Hernandez chegou em sua monografia de conclusão de curso de graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida em 2011. No trabalho “A Nostalgia Enquanto Tendência de Comportamento Entre os Jovens da Geração Y”, Júlia constatou que a Geração Y é nostálgica mesmo estando ainda no início de suas vidas.
Esta geração, escreve Júlia em seu trabalho, está formando suas preferências e ligações nostálgicas por determinados objetos que fizeram parte de sua juventude. Os jovens adultos consumidores podem ver sua vida futura como um desafio e usar as experiências do consumo retrô como um escape para o indesejado.
“Usar este sentimento como uma ferramenta de marketing pode ser uma estratégia muito bem sucedida entre os millenials”, conclui a pesquisadora.
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