Meryl Streep foi indicada 19 vezes ao Oscar de melhor atriz, seja no papel principal ou como coadjuvante. Venceu três vezes. Das trinta vezes que foi indicada ao Globo de Ouro, levou o prêmio oito vezes para casa. Já encarnou papéis tão distintos quanto a editora de moda com pendores tirânicos Miranda Priestly em “O Diabo Veste Prada”, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e uma mãe desesperada em “A Escolha de Sofia”. Neste domingo (08), no Globo de Ouro, ao receber o prêmio Cecil B. DeMille pelo conjunto de sua obra, mais uma vez entrou no personagem: no de vítima.
Com a classe, carisma e inteligência de quem é a melhor atriz do mundo, Meryl Streep fez um discurso que certamente entrará para a história dos Globo de Ouro. Subiu ao centro do palco e quase sem voz iniciou seu discurso, de uma eloquência de fazer inveja a qualquer político profissional. E, a poucos dias da posse de Donald Trump, a atriz tomou para si a defesa dos estrangeiros, jornalistas (muito obrigado!) e artistas de Hollywood.
“Vocês e todos nós nesta sala pertencemos, realmente, aos segmentos mais demonizados da sociedade americana neste momento. Pensem: Hollywood, estrangeiros e a imprensa”, afirmou, recebendo aplausos da plateia composta por... membros da imprensa, estrangeiros e artistas de Hollywood, muitas vezes as três coisas juntas. Não podia estar com o jogo mais ganho.
Foi além. “Hollywood está repleta de forasteiros e estrangeiros. Se você expulsar todos, não terá mais nada para assistir, com exceção de futebol e artes marciais mistas, que não são arte”, disse com a voz embargada.
É de cortar o coração. Imagine dúzias de atores milionários europeus sendo arrancados de suas mansões em Beverly Hills e fazendo fila para serem deportados de volta a seus países miseráveis, como a Inglaterra ou França.
Falácia do espantalho
Quando Streep diz “se você expulsar todos”, está recorrendo à manjadíssima falácia do espantalho. É o velho truque de acusar seu adversário de estar a favor de algo que ele jamais sugeriu ou defendeu. A desinformação é grande, mas Donald Trump jamais sugeriu expulsar todos os imigrantes e estrangeiros dos Estados Unidos. Somente os ilegais. É algo que qualquer país faz, às vezes até quando não deve — como quando o Brasil deportou para Cuba pugilistas que resolveram ficar por aqui e não voltar para a ditadura dos Castro logo após os Jogos Panamericanos de 2007.
A falácia do espantalho é fácil de identificar. Geralmente tem um quê de fantasia, de um cenário louco e exagerado, criado de propósito para impressionar a audiência. É o caso do “expulsar todos”. Ninguém defendeu essa barbaridade.
Quanto a dizer que os segmentos mais vilipendiados da sociedade americana são atores de “Hollywood, estrangeiros e imprensa”, Streep mostra um dos motivos que levaram à vitória de Trump: a falta de conexão com o povo. Estrangeiros são vilipendiados pela sociedade americana? Muçulmanos e hispânicos certamente são. Mas não todos. Mas o que dizer dos milhares de trabalhadores que perderam seus empregos e a renda ao longo das últimas décadas? São menos vilipendiados que atores que recebem cachês na casa dos sete dígitos por filme?
Argumento de autoridade
É normal se emocionar com o discurso de alguém como Meryl Streep. Existe algo que os especialistas em lógica chamam de argumento de autoridade (argumentum magister dixit, em latim). Nós, pessoas inteligentes, somos levados a crer que sempre damos mais valor ao conteúdo de uma mensagem do que à pessoa que a transmite.
Na verdade as coisas não acontecem desse jeito. Mesmo que não queiramos, inconscientemente vamos valorizar mais uma atriz vencedora do Oscar várias vezes, eloquente, do que um zé mané qualquer. Mesmo que a verdade esteja sendo dita pelo zé mané. Não é à toa que as redes sociais amanheceram com seu discurso compartilhado por milhares. Somente o vídeo com o discurso no site da revista Hollywood Reporter tinha mais de 5 milhões de visualizações.
Então, se você se emocionou, não tem problema. Mas é bom lembrar: atores são pagos para mentir. E neste mundo de mentiras encenadas, ninguém é melhor que Meryl Streep (cujo nome real, fique sabendo, é Mary Louise).