A ordem em que Iván Bojko, de 96 anos, mantém sua casa e oficina de artesanato, sem falar na aparência pessoal, denunciam um traço da personalidade do leste europeu. E ajudam a entender a indignação com que ele reage no documentário “Iván”, em cartaz na cidade, quando retorna à terra natal e encontra ruas enlameadas e roças destruídas.
“Me faz muito mal”, confessa o refugiado da Segunda Guerra, naturalizado brasileiro, que mora no bairro Bigorrilho.
Tinha dois calmantes no bolso, e tomei, mas não adiantou. Minhas pernas tremiam.
Assistir ao filme dirigido e idealizado pelo descendente de imigrantes ucranianos Guto Pasko é uma travessia por um vale das lágrimas. A partir do momento em que Iván recebe, diante das câmeras, a passagem para retornar ao vilarejo de Konyukhy, no oeste da Ucrânia, depois de 68 anos de exílio, passando por cada parada em que encontra vizinhos e amigos de infância, até o doído e longo abraço na irmã que não via desde os 11 anos dela e 20 dele, são várias caixas de lenço.
A característica ordeira, metódica, talvez um pouco autoritária desse senhor encantador transparece no percurso da viagem, que durou cerca de 20 dias.
Documentário está em cartaz nas salas do Água Verde (16h30), Cineplus Jardim (15h), Espaço Itaú (21h) e Cineplus Campo Largo (18h20).
O trajeto foi filmado o tempo todo pela equipe, para não perder nada. Dentro do ônibus que levava o grupo à Ucrânia profunda, Iván ia sentado na ponta da poltrona, segurando um mapa da região que ele mesmo fez dois dias após saber que retornaria a seu país.
Na conversa com a Gazeta, ele rememorou os minutos antes de chegar à antiga vila: as pernas tremiam, os olhos não aceitavam a desolação da paisagem.
Em sua imaginação, a Ucrânia era uma lavoura bem cuidada, onde o pai dava duro para construir a casa onde moravam e o abrigo dos animais. “A vila era como uma cidade. Todo mundo ajudava, arrumava as ruas. Agora não tem nem homens”, lamenta. Os efeitos da ocupação alemã e soviética ficaram patentes da janela da condução.
A morte da mãe
O clímax do documentário de Guto Pasko sobre o Iván pode ser considerado a entrada na antiga casa, onde o protagonista não se conforma com o abandono. Mas o extravasamento de emoção não amortece para a revelação seguinte sobre como sua mãe morreu. Nenhuma ficção seria tão cruel com o espectador.
Quando se ofereceu para assumir o lugar da irmã, convocada a aderir aos campos de trabalho forçado na Alemanha pelos nazistas, em 1942, Iván nem se despediu da família. Depois foram seis anos em Hamelin e então o exílio no Brasil, onde foi recebido pela vasta comunidade ucraniana. Se voltasse aos domínios da ex-URSS, poderia ser executado.
Por isso, a primeira coisa que pediu ao descer do ônibus foi ver onde os pais estavam enterrados. “Quando me falaram que ninguém sabia o lugar exato, comecei a me sentir mal”, conta. Foram três calmantes antes de entrar na casa, que ele não acreditava ser o ninho de sua infância, tamanho abandono e ruína. No filme, fotografias antigas deixadas nas paredes são cobertas como o áudio de Iván, inconsolável: “Que se aconteceu, meu pai? Fala comigo”, diz.
“Eu chamei pela mãe, pelo pai, e ninguém veio”, conta à reportagem, revelando uma alma poética afinada com o hobby a que se dedica desde os anos 1960: a construção de ‘banduras’, instrumento típico ucraniano, similar à harpa – em sua oficina, cuida delas com o máximo de capricho.
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