| Foto: Ricardo Humberto/ Especial para a Gazeta do Povo

Os gênios podem ter biografia de gênio. Imagine um músico que tenha começado a tocar piano antes de completar 3 anos de idade. Aos 5 anos, ele aparece na TV, já como o prodígio de um programa de talentos apresentado por Paul Whiteman, o bandleader que encomendou e executou pela primeira vez “Rhapsody in Blue”, de Gershwin. Aos 7, ele já fazia recitais completos, tocando Bach, Beethoven, Mozart e composições próprias.

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No fim da adolescência, o músico ganha uma bolsa e entra na prestigiada Berklee College of Music – um dos conservatórios mais respeitados do mundo. E, antes de terminar os estudos, é aprovado em dois dos mais difíceis vestibulares possíveis para um músico iniciante – dois processos seletivos bastante distintos, um de música clássica e outro de jazz.

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No vestibular de música clássica, recebe o convite para estudar em Paris, com Nadia Boulanger, a professora de alguns dos grandes talentos do século 20. No outro vestibular, recebe o convite para tocar em Nova York, com o baterista Art Blakey, que, tal como Boulanger, também irá revelar alguns dos nomes notáveis do século passado – mas no jazz. Qualquer um com um início de carreira assim já chamaria bastante atenção – mas esse músico é Keith Jarrett e sua história singular e impressionante estava apenas começando.

Impressões sobre a genialidade

No caso da música de concerto, como em uma metáfora que Caetano W. Galindo me contou (o Caetano é um tradutor, escritor e professor que costuma dizer que, em essência, é um músico), aqueles pouquíssimos que chegaram a uma boa interpretação de uma sonata de Beethoven são como a elite da ginástica olímpica mundial — são equilibristas extraordinários, assombrosos, de uma precisão, coordenação e invenção que humilham os mortais.

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Jarrett escolheu o convite de Art Blakey, mas nunca abandonou a carreira de músico clássico. Como concertista, como intérprete de piano e cravo, gravou ao lado de gigantes, como a flautista Michala Petri e o violinista Gidon Kremer. Apresentou-se também como solista para o primeiro escalão da regência mundial, incluindo aí maestros como John Eliot Gardiner, Christopher Hogwood, Vladimir Ashkenazy e Dennis Russell Davies. Suas gravações, que vão do repertório barroco à música contemporânea, ainda que em pequeno número (se comparadas com as dos intérpretes especializados), não passaram desapercebidas pela crítica.

Olhando em retrospectiva, a escolha pelo jazz foi natural para Jarrett. O jazz é uma música que, em maior ou menor grau, os músicos improvisam, isto é, inventam livremente durante o concerto – uma liberdade praticamente desconhecida e, em grande parte, proibida para o intérprete contemporâneo da música clássica.

Jarrett, graças a uma extraordinária capacidade de improvisação, levou essa liberdade a extremos nunca antes explorados nem pelo jazz nem por qualquer outro tipo de música. Especialmente nos concertos em piano solo, o músico entra no palco sem nenhuma ideia do que irá acontecer – e ele faz isso regularmente há mais de 40 anos.

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O estilo inconfundível de Jarrett permanece vivo e sua influência foi decisiva para boa parte dos pianistas de jazz que vieram depois dele, incluindo estrelas de primeira grandeza como Jason Moran, Ethan Iverson e, sobretudo, Brad Mehldau.

Sim, é verdade que o saxofonista Ornette Coleman [morto no último dia 11, aos 85 anos], em 1960, antes de Jarrett, já havia gravado um álbum totalmente improvisado, o revolucionário “Free Jazz”, que inaugurou uma nova linguagem para o gênero. Mas há muitas diferenças entre um e outro: a liberdade extrema do pianista ficou famosa não pela fúria do atonalismo e da polirritmia (a matriz do movimento iniciado por Coleman e que, vale lembrar, Jarrett não ignorou), mas pelo lirismo de um compositor inspirado de melodias. Depois de 50 anos, é preciso admitir que o Free Jazz ficou um movimento datado, importante como registro histórico de uma linhagem da música negra de protesto, mas virtualmente inexistente no presente. Já a música de Jarrett, não: seu estilo inconfundível permanece vivo e sua influência foi decisiva para boa parte dos pianistas de jazz que vieram depois dele, incluindo estrelas de primeira grandeza como Jason Moran, Ethan Iverson e, sobretudo, Brad Mehldau.

O disco

Em 24 janeiro de 1975, quando Jarrett estava com 29 anos, ele entrou sozinho na Ópera de Colônia, na Alemanha, para mais uma de suas improvisações livres. Foi a primeira vez que autorizaram naquele lugar uma música estranha à tradição clássica. Tudo conspirava contra – depois de uma viagem longa, o músico estava cansado, havia dormido mal. Houve um erro da organização do evento e o piano que estava no palco, que não poderia mais ser trocado, era um de ensaio, menor, com uma sonoridade metálica e estridente. Jarrett ficou bastante contrariado com a qualidade do piano e por muito pouco o concerto não foi cancelado.

O terceiro sinal da Ópera de Colônia toca – são cinco notas, uma breve melodia anódina para indicar o início do espetáculo. Jarrett entra no palco, senta junto ao piano e repete as mesmas cinco notas do terceiro sinal. É possível ouvir risadas no fundo da plateia – era uma piada, uma provocação. E então Jarrett prossegue improvisando variações sobre as cinco notas. Faz isso por 26 minutos ininterruptos.

Guia de iniciação

A obra de Jarrett é vastíssima (se consideramos as gravações em que ele não foi bandleader , são mais de 200 álbuns) e, como acontece com quase todos os músicos de jazz, bastante irregular. O melhor de sua produção está no selo ECM, infelizmente indisponível em serviços de streaming como Spotify ou Deezer. Abaixo, sugestões para começar a ouvir Keith Jarrett:

“The Köln Concert” (1975)

O álbum sempre aparece na lista dos discos mais fundamentais da história do jazz e talvez seja a melhor porta de entrada para conhecer o pianista. Em 2013, Peter Elsdon lançou um livro sobre a histórica improvisação, dentro da série inglesa “Oxford Studies”. Um longo trecho do primeiro movimento pode ser ouvido em uma marcante cena de “Caro Diário”, do cineasta italiano Nanni Moretti, em uma homenagem a Pasolini. Nos álbuns em piano solo, não é o Jarrett mais complexo, mas provavelmente é o mais belo.

“The Survivors’ Suite” (1976)

É a melhor gravação do quarteto americano, com Paul Motian na bateria, Charlie Haden no baixo e Dewey Redman no sax tenor. Em apenas duas faixas (“Beginning”, de 27 minutos e “Conclusion”, de 21 minutos), com muito uso de overdub, o quarteto pode passar da fúria caótica ao extremo lirismo. É uma ótima oportunidade para ouvir o Jarrett multi-instrumentista – aqui ele toca piano, celesta, flauta, sax e percussão.

“Keith Jarrett at the Blue Note – The Complete Recordings” (1995)

Caixa com seis CDs que traz três noites do trio de Jarrett no histórico bar de jazz nova-iorquino. Destaque para as improvisações longas sobre standards como “Autumn Leaves” (que acaba virando um irresistível groove) e composições de Jarrett, como “Desert Sun”. No Brasil, em homenagem a esta gravação, o escritor Silviano Santigo lançou o livro de contos “Keith Jarrett no Blue Note: Improvisos de Jazz” – são contos improvisados livremente, sem correção ou alteração posterior do autor.

“Händel: Suites for Keyboard” (1995)

Jarrett gravou o repertório barroco tanto em cravo quanto em piano. As suítes de Händel foram gravadas em piano e aqui é possível ouvir duas especialidades de Jarrett interpretando clássicos: a inspirada sutileza das variações de dinâmica e um enorme bom gosto na marcação rítmica. De Händel, Jarrett também gravou as sonatas, com a flautista Michala Petri.

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No total, em quatro movimentos, improvisa por 66 minutos. “The Köln Concert”, o álbum que registra a gravação em Colônia, entra para a história da música: é um grande sucesso de crítica e de público, com mais de 3 milhões de cópias vendidas até o momento. É também a gravação mais vendida de piano solo da história, em qualquer gênero. Mas é importante ter ciência que o sucesso de um disco de jazz é bem diferente do sucesso da música mais comercial – não só pelos números, que no curto prazo são bem mais tímidos, mas por causa da natureza das vendas.

“The Köln Concert”, assim como os clássicos de qualquer arte, não foi um fogo de palha, uma faísca que explodiu comercialmente e depois desapareceu: o álbum nunca parou de vender e continua fazendo sentido para as novas gerações.

Para quem pensa que vender muito é necessariamente sinônimo de arte ruim – eis aí uma espécie de cantilena das vanguardas do passado –, vale lembrar que, frequentemente, no longo prazo, são os clássicos da cultura que atingem mais pessoas. Nenhum escritor vendeu tanto e chegou a tanta gente quanto Shakespeare.

Mas há ainda mais assombros na carreira de Jarrett. Na juventude, após tocar com os Jazz Messengers de Art Blakey, ele entrou na banda de Charles Lloyd e, depois, na de Miles Davis. O convite de Miles foi como um terceiro vestibular – as bandas em que o mítico trompetista se cercava de jovens ficaram célebres por revelar os músicos do futuro. Enquanto tudo isso acontecia, Jarrett gravava seus primeiros discos, com diversas formações diferentes. Nessa fase inicial, ainda nos anos 70, Jarrett também foi um prolífico multi-instrumentista, tocando e gravando, além do piano, sax soprano, percussão, celesta, flauta, órgãos sinfônicos, clavicórdio, entre outros instrumentos. Ele próprio admite que nunca foi um virtuose além das teclas, mas sua desenvoltura em outros instrumentos foi suficiente para que Stan Getz um dia o convidasse para entrar em sua banda – para tocar guitarra!

Bandas

Como bandleader, Jarrett montou três conjuntos importantes. Foram dois quartetos (um com músicos americanos, outro com escandinavos) e um trio. O quarteto escandinavo foi o momento mais pop da carreira de Jarrett e revelou o saxofonista norueguês Jan Garbarek. Já no quarteto americano, com o baixista Charlie Haden, o baterista Paul Motian e o saxofonista Dewey Redman, Jarrett fez experimentos mais radicais de composição, algumas vezes saindo da tradição da música ocidental. Mas foi o trio, com o baixista Gary Peacock e o baterista Jack DeJohnette, que deixou marcas mais profundas na carreira de Jarrett e na história do jazz. Há semanas circulam rumores sobre o fim do trio – a única das bandas que continuava ainda na ativa.

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A formação com piano, baixo e bateria é para o jazz o que o quarteto de cordas é para a música clássica. É um formato de escassez, de poucos recursos tímbricos, por isso mesmo é um gênero difícil, desafiador para os músicos.

No jazz, o gênero foi consagrado pelo trio do pianista Bill Evans, um dos primeiros a dar mais independência para o baixista e o baterista. Gary Peacock e Jack DeJohnette são músicos extraordinários – ambos tocaram com Bill Evans e ambos também são pianistas e compositores. A parceria deles com Keith Jarrett redesenhou a linguagem do trio (por meio das improvisações livres e longas que eles se permitiram) e redesenhou os standards – os clássicos do repertório popular dos Estados Unidos. À parte os rumores sobre o fim, os três tocaram juntos por quase 40 anos e o trio de Jarrett rivaliza com o de Bill Evans no posto de mais importante da história do jazz.

Nas comemorações de seus 70 anos – completados no dia 8 de maio –, Jarrett lançou simultaneamente dois álbuns. “Creation”, em piano solo, traz improvisações selecionadas de apresentações em Tóquio, Toronto, Paris e Roma, todas da turnê de 2014. “Barber / Bartók” traz as gravações de concertos para piano de Samuel Barber e Béla Bartók – ambas realizadas nos anos 1980.

Ele não dá sinais de que esteja parando e sua produção continua de alta qualidade.

André Tezza Consentino
é mestre em Filosofia (UFPR) e estudou história e linguagem da música com o maestro Osvaldo Colarusso. É professor da Escola de Comunicação e Negócios da Universidade Positivo e coordena a pós-graduação em Comunicação e Cultura: Interfaces.