Algo que pareceria impensável deixou soberbos rastros históricos e não só acabou acontecendo, como está registrado em dezenas de livros e anotações ainda por serem publicadas. Da gélida e sombria Copenhagen à friorenta e luminosa Curitiba, Soren Kierkegaard (1813-1855), teve seu tormentoso périplo existencial introjetado e reimaginado por um brasileiro nos anos 1950/1980, fato único na América Latina.
Na hora em que se assinalam os 200 anos de nascimento (neste 5 de maio) do genial escritor, teólogo e filósofo dinamarquês, mote de seminário sobre sua vida e obra, recém-concluído na Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro), o nome de Ernani Reichmann (1920-1984), vem à lume com sua obra (quase 50 títulos), tanto de ensaios, memórias e diários, quanto ficcional.
Natural de Erechim (RS), escritor, filósofo, professor universitário e homem público foi secretário de Estado do governo Ney Braga (1961-1965) , Reichmann é o primeiro biógrafo de Kierkegaard no Brasil e do continente americano, como também aquele que, de forma inédita e inaudita, arriscou-se a reviver seus "temor e tremor" debaixo da linha do Equador, inclusive, aprendendo a língua do mestre para lê-lo e reinterpretá-lo no original.
Com sua alentada biografia Soren Kierkegaard (publicada em 1972, pela Edições Jr., de Curitiba ), Reichmann entrou para a história da cultura brasileira e mundial. Ainda que muitos "kierkegaardianos", desde então, venham bebendo em seus textos e traduções, registra-se um hiato em reconhecer-lhe a estatura intelectual e o investimento sensorial nas volições, medos e sonhos de seu mestre.
Bem no diapasão metafísico do poeta nórdico, é quando Reichmann tenta "incorporar" feito médium, eu diria, material e espiritualmente, a angst (angústia) de Kierkegaard, aliás, palavra de sentido multinacional, segundo Vamireh Chacon, pois tanto vale em alemão quanto na Dinamarca, Noruega e Holanda. O gesto lúdico e performático de Reichmann é uma façanha irrepetível, jamais empreendida por ninguém, nem antes nem depois.
O espectro da paixão de Reichmann pelo chamado "pai do existencialismo", além do volume biográfico fundador, se espelha por dezenas de cadernos. Mas é nos três volumes de Intermezzo Lírico-Filosófico, que ele resume toda "kierkegaardiana" de sua lavra e fruto de seu mergulho no universo trágico do autor. Infelizmente, essa ciclópica estante de ensaios, memorialística e romances está fora de mercado, sendo encontrável apenas em sebos, o que não deixa de ser, sim, um atestado de permanência, segundo o poeta e acadêmico Antonio Carlos Secchin e, de forma randômica, disponível em bibliotecas de universidades, especialmente, do Sul.
À época jornalista iniciante, almejando ser escritor e cineasta, e amigo cotidiano de Reichmann, tive a recompensa de conviver com ele e seus estimulantes ensaios de fundo e forma "kierkegaardianos", muitos publicados no suplemento literário letras e/& artes, dirigido por mim e replicado em edição fac-similar coincidindo com os cinquenta anos de sua edição (2011).
Estirpe moral
Ernani Reichmann era da mesma estirpe moral de Kierkegaard, avesso ao "espírito de horda", equidistante da igreja e da política (ainda que na juventude simpatizante da Ação Integralista Brasileira), e como ele, afeito a pseudônimos e codinomes, antes que aos heterônimos de Fernando Pessoa, como adverte o filósofo Sérgio Paulo Rouanet, para dizer-se múltiplo, controverso, certo "outro" fake: um homem em permanente estado de graça & desgraça, até nas suas relações afetivas, muitas delas que lhe matizam a própria escrita, toda ela de corte confessional e dialógica como se jamais fosse dada à leitura e à fruição de terceiros.
Há quem diga que Ernani Reichmann é hoje um autor esquecido. Mas, como não se lembrar do seu livro, O Trágico em Octávio Faria, de 1978, onde se detém na expiação da culpa de inspiração "kiergaardiana" em A Tragédia Burguesa? Ou, de A Poética de Carlos Nejar (1973), coassinado pelo crítico paranaense Temístocles Linhares (1905-1993), uma rigorosa exegese do fabro do poeta gaúcho, que ressume laivos da angústia do filósofo dinamarquês? Seria, então, como dizer que Kierkegaard também é um autor esquecido, quando é cada vez mais estudado e reverenciado na academia e fora dela, tal qual sua obra traduzida e relida, sempre mais intensa e extensivamente.
Não há estudo sobre Kierkegaard no Brasil e na América Latina que não o cite e se derrame em loas pelo seu pioneirismo, ousadia e contundência, materializada em dezenas de livros que vieram a lume por conta própria, ou pela editora da Universidade Federal do Paraná, onde dava aula de economia política no curso de Ciências Econômicas (fui seu aluno...).
Febre dalma
A própria Dinamarca ficou pasma ao se dar conta que nos trópicos alguém tentava reproduzir a nebulosa febre dalma de Kierkegaard, a sua angústia do existir, o conflito entre ética e estética, ceticismo e fé, racionalidade e transcendência, o indivíduo e a impessoalidade do coletivo. Como numa gangorra, Reichmann também se comprazia entre pessimismo e melancolia corrosivos, mas que acabaram por tornar longevos sua vida-e-obra.
É, portanto, através da literatura e do comprometimento com a alta subjetividade de Kierkegaard, seu igual-desigual europeu ("... ousar é perder o equilíbrio momentaneamente, não ousar é perder-se"), que o Brasil urge reverenciar o gaúcho-paranaense Ernani Reichmann, outorgando sobrevida ao seu engenho e à consciência mítica e crítica protagonizada por ele.
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