"Acústicos" e "Ao vivos" se multiplicando nas prateleiras é um dos reflexos mais óbvios da preguiça da indústria fonográfica, pouco afeita a riscos. Lançando o seu "Acústico MTV" (Sony/BMG) dois anos depois de um "ao vivo" ("In cité"), Lenine porém não se deixa contaminar pela letargia que o formato inspira. Inquieto, o artista dá descanso para a mente apenas quando contempla suas centenas de orquídeas - que crescem e florescem num sítio que ele tem na Serra das Araras. Quando não está ao lado das flores, cria. Prefere ver o "Acústico", portanto, não como o porto seguro que é para a indústria, e sim como uma onda a se surfar - a metáfora é dele.
- Se a onda está ali, você tem uma prancha e se garante em cima dela, por que não surfar? - pergunta o músico, voz tranqüila, as ondas da Praia Vermelha estourando ao fundo. - Meu interesse no projeto foi simplesmente artístico. Não pensei no comercial. O que mais me atraiu foi poder despir as canções e vesti-las de novo.
Considerando os limites do formato, Lenine despiu as canções com a inteligência e o vigor que mostra desde sua estréia em disco, em 1983, com "Baque solto", lançado com o parceiro com Lula Queiroga. Se em alguns momentos a falta de timbres eletrificados tira um pouco da força das canções, na maior parte do CD a (excelente) banda e a orquestra (com regência de Ruriá Duprat) superaram as restrições com caminhos criativos para os arranjos. Nesse sentido, o guitarrista Jr. Tostoi, que costuma usar dezenas de pedais em seu estilo repleto de distorções, foi o que mais enfrentou desafios, na opinião do próprio Lenine. Para se aproximar da variedade de timbres com que está acostumado, Tostoi usa no CD craviola de 6 e 12 cordas e dois tipos de violão - um deles tocado com uma caneta, que causa um efeito fantástico em "Jack soul brasileiro".
- Jr. Tostoi aparece mais melódico, mais harmônico nesse disco. Mas ele deu um jeito de manter seu estilo. Não só no som da caneta nas cordas, mas também no delay mecânico, que é a repetição do som como um eco, mas tocada no instrumento, sem interferência eletrônica - explica, simulando o efeito com a boca, usando seu braço como o de uma guitarra.
Além de Tostoi, a banda tem Pantico Rocha (bateria) e Guila (baixolão, baixo acústico e baixo semi-acústico). Eles sustentam o esqueleto do CD, mas a participação dos convidados foi fundamental para definir a cara do álbum.
- Quando pensei neles, já pensei as músicas para cada um - conta Lenine. - Conheci o Gog [rapper de Brasília] com o CD "Tarja preta", que tinha uma música em que ele sampleava "A ponte" e fazia uma crítica sobre o superfaturamento da ponte dos três arcos em Brasília. E sempre imaginei que "Dois olhos negros" casaria bem com a força da bateria de Iggor Cavalera [o arranjo com duas baterias realmente impressiona].
Da mesma forma, entraram o chileno Victor Astorga, corne inglês e oboé em "O último pôr do sol"; a harpista Cristina Braga embelezou ainda mais a linda "Paciência"; a mexicana Julieta Venegas toca acordeon e canta em "Miedo"; o baixista camaronês Richard Bona solta um delicado contracanto em "A medida da paixão". No meio disso tudo, a única presença que parece injustificada é a de Gog, que solta um palavrório pouco consistente em "A ponte". Sua participação casa, na verdade, com a condescendência com que o rap, seja ele bom ou ruim, é tratado pela MPB mais "nobre" - um tanto de paternalismo talvez.
Lenine explica que o repertório foi definido, em primeiro lugar, a partir dos convidados. O restante, ele preencheu com suas músicas mais conhecidas ou que ele gostaria de revisitar - o CD tem 14 faixas, o DVD terá 22, a íntegra do show.
Além das já citadas, estão na lista "Hoje eu quero sair só" , "O homem dos olhos de raio X", "O atirador" e "Tudo por acaso" e "Lá e cá", delírio recorrente na música brasileira de cruzar esquinas da Bahia e do Rio ("Onde o Rio é mais baiano", de Caetano, e "Nação", de João Bosco e Aldir Blanc, são exemplos). A Cidade Maravilhosa, aliás, é paixão de Lenine. A ponto de ele ficar indignado a cada vez que é citado como "o pernambucano Lenine".
- Nasci em Recife com muito orgulho, mas esse tipo de referência me restringe. Moro no Rio há mais de 20 anos. Escolhi ser carioca e sou mais carioca que muitos que nasceram aqui. A questão principal é: por que não se refere a Arnaldo Antunes como o "paulista Arnaldo Antunes"?
Cariocapernambucano, com pés, mãos e ouvidos na África, na América Latina, na Europa ("hoje tenho onde cair em qualquer lugar do mundo", diz), Lenine surfa sua onda acústica com lirismo, tesão, e alguns momentos de brilhantismo. O resultado é um bom painel do artista Lenine, com muitas de suas características ali, seu lado melodioso e o outro percussivo, de canto quase falado; sua poesia de imagens tecnológicas e/ou prosaicas; o groove de seu violão. Mas é bom imaginar o que Lenine e cia. fariam em águas mais revoltas.
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