Um grande risco ameaça o século 21: a difusão em massa das verdades peremptórias. Nosso tempo se caracteriza pelo culto da ênfase. É um tempo de gritaria. Vozes enfáticas e cheias de si nos asfixiam com sua veemência. Quase não sobra espaço para a hesitação e para a dúvida. Para o movimento, e vida é movimento, e não estagnação. Resta pouco lugar para a surpresa.
Daí a alegria que sinto ao ler Curupira Pirapora, livro infantil de Tatiana Salem Levy (editora Tinta da China, ilustrações de Vera Tavares). Tatiana é uma das melhores autoras da nova geração brasileira. Seu primeiro romance, o belo A Chave da Casa (Record), lhe deu o Prêmio São Paulo de autor estreante. Agora transporta seu talento para essa primeira narrativa para crianças.
O que dizer às crianças que lutam para crescer em um mundo estagnado na ênfase e nas certezas? Como lhes mostrar que a realidade é fluida, que a vida é feita de ventos, e não de pedras? Tatiana consegue isso. Seu livro narra o encontro de dois mundos divergentes e as mudanças que ele provoca. Conta a história da menina Janaína, que deixa a cidade grande para uma visita aos avós índios na floresta. Janaína é mameluca: traz, dentro de si, dois sangues. Carrega, em seu interior, o desencontro, mas também a possibilidade do encontro verdadeiro.
Na floresta, ela encontra um curupira o anão de cabelos longos e vermelhos, com os pés virados para trás, personagem do folclore brasileiro. Pirapora (em homenagem ao pai, Pira, e à mãe, Pora) é a encarnação do Estranho. Janaína entra em pânico. "Por que você tem os pés pra trás? E por que anda assim, só com uma tanguinha de folhas?", ela pergunta. Não percebe que, aos olhos de Pirapora, também ela parece estranha e inaceitável. "Por que você usa tanta roupa? Para que esses tamancos na floresta? E essa bolsa tão grande?"
A menina exibe os objetos que carrega consigo: um computador, um celular, um batom, um espelho, uma barra de chocolate. A eles contrapondo a beleza da floresta, o curupira a convida para um passeio. Em sua aparente simplicidade, em seu silêncio, a floresta é rica e complexa. Janaína é apresentada a frutas de nomes estranhos: puxuri, buriti, andiroba, bacuri, teperebá, cupuaçu. Começa a perder o medo. Visto de longe, o Estranho é não só ameaçador, mas vazio como os mortos-vivos que circulam pelos filmes de terror. Basta, porém, aproximar-se um pouco e isso muda.
A menina se surpreende, em particular, com a quantidade de palavras que desconhecia. "E com as palavras, vinham também as coisas, que ela nem imaginava existirem". O que não tem nome não existe, embora exista, ela descobre. Assombra-se, ainda, com o silêncio da floresta: "o silêncio é o som das coisas que raramente ouvimos, como o coaxar dos sapos e o pio das corujas". O silêncio, a rigor, não existe: ele é só uma palavra que encobre o que não somos capazes de ouvir. Até porque, o curupira lhe mostra, "para os sentimentos mais raros não há palavra que chegue".
Um barulho seco corta a floresta. É um tiro, disparado por um caçador, que mata uma onça e seu filhote. Revoltados, Pirapora e Janaína resolvem enfrentá-lo. A morte é o inaceitável. Ao deparar com o curupira, é o caçador que, diante do Estranho, entra em pânico. Tenta agradá-lo oferecendo aguardente e fumo, dois prazeres, diz a lenda, de que um curupira nunca abdica. Pirapora, porém, resiste. E ameaça pendurar o caçador, de cabeça para baixo, em uma árvore bem alta. O homem pergunta o que ele quer de presente para desistir da ideia. "Leite da Lua", responde, sem pensar. E lhe ensina como chegar à Lua e como colher esse leite.
Pirapora não esperava por isso: o caçador chega mesmo à Lua e, em uma de suas crateras, colhe um leite denso e amarelo. A imaginação do curupira altera e germina o real. "Vai ver que ela (a Lua) me ouviu e começou a produzir leite", ele medita. Janaína pensa, então, nos poderes do amigo, que "quando inventa a palavra, inventa também a coisa que a palavra diz". Dizendo de outra maneira: a palavra vem sempre antes da coisa, e não ao contrário. É preciso, primeiro, dar um nome para que algo passe a existir.
Depois de libertar a floresta, Janaína entende que é hora de voltar para a cidade. "De novo, o silêncio se instalou. Os olhos úmidos dos dois diziam o que as palavras não podiam dizer". Eles gostavam muito um do outro. Um gostar tão intenso que as palavras falhavam e só com os olhos expressavam esse sentimento. Pirapora explica à menina que será também através dos olhos que, mesmo longe, eles continuarão perto um do outro. Quando quiser senti-lo perto de si, bastará que a menina olhe para a Lua, que ele, o curupira, estará olhando também. Esse cruzamento de olhares distantes será uma aproximação. Ao olhar para a Lua, eles não verão a Lua, mas como em um espelho a figura do outro. Pirapora lhe explica que essa é uma ótima maneira de ter perto as pessoas que estão longe: colocar outra coisa (uma imagem) em seu lugar.
Janaína lhe propõe, então, uma segunda maneira de permanecerem juntos mesmo estando separados. Uma palavra ganha novo sentido para os dois: "saudade". Antes de conhecer Janaína, o curupira vivia "numa escuridão". Isso mudou: "Agora que ele enfim entendia o significado da palavra saudade, nunca mais seria só". Só estamos sozinhos se não colocamos uma palavra no lugar do que nos falta. A palavra não é a coisa, mas a traz de volta ao nomear sua ausência. Saudade quer dizer isso: que algo, que não está ao nosso lado, está efetivamente ao nosso lado.
O livro de Tatiana Salem Levy é uma delicada, mas densa, reflexão sobre o valor das palavras, que guardam muito mais do que costumamos considerar. É, ainda, um relato a respeito da positividade do Estranho que, em vez de provocar medo, expande nossa visão do mundo. Estranhos um para o outro, falando línguas desconhecidas, Pirapora e Curupira entendem, enfim, que a divergência é a condição primeira do encontro. Aprendem, assim, a amar a diferença. E mostram a seus pequenos leitores que mesmo os sentimentos mais incômodos, como o medo, arrastam atrás de si grandes alegrias.
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