Em 1903, a polonesa Marie Curie foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel, dado em reconhecimento às suas pesquisas sobre radioatividade. Em 2015, a ucraniana (de nascimento) e bielorrussa (de criação) Svetlana Aleksiévitch recebeu o Prêmio Nobel pelo seu trabalho literário de retratar importantes questões de seu tempo.
A comparação entre as duas não está somente no prêmio. Ambas dedicaram parte das suas vidas para entender a radioatividade: Curie em sua parte química e física, Aleksiévitch em seus efeitos para a humanidade. Em seu livro “Vozes de Tchernóbil”, que chegou em maio às livrarias brasileiras, a escritora e jornalista recupera as narrativas do desastre nuclear de 1986, ouvindo inúmeras vozes em seus relatos de dor e realidade.
“Posso dizer que sou uma ‘mulher-ouvido’”, diz Aleksiévitch em seu discurso proferido na cerimônia de entrega do prêmio. A comparação é pertinente: seu livro é composto de relatos em primeira pessoa dos inúmeros entrevistados. A polifonia cria um panorama do que o evento realmente significou para as pessoas afetadas.
Este livro não é sobre Tchernóbil, mas sobre o mundo de Tchernóbil. Me dedico ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas comuns. Aqui, no entanto, nada é ordinário: nem as circunstâncias nem as pessoas que, obrigadas pelas circunstâncias, colonizaram esse novo espaço, vindo a assumir uma nova condição.
Poucas vezes um título falou tanto sobre um livro - a obra ecoa vozes de camponeses que ainda moram em zonas contaminadas, cientistas que atestaram a gravidade do acidente, bombeiros que atenderam as primeiras horas do incêndio e crianças que nasceram em um mundo impregnado de radioatividade dos três países mais atingidos: Bielorrússia, Ucrânia e Rússia.
Relatos
O primeiro relato do livro é de Liudmila Ignátienko, esposa de um dos primeiros bombeiros a chegar na usina depois do acidente. “No meio da noite, ouvi um barulho. Gritos. Olhei pela janela. Ele me viu: ‘Feche a persiana e vá se deitar. Há um incêndio na central. Volto logo’”. O marido nunca mais voltou - depois de poucas horas tentando apagar o incêndio, foi para o hospital de Pripyat com claros sinais de contaminação. Em pouco tempo foi encaminhado para um centro de tratamento de Moscou, onde morreu 14 dias depois, assim como boa parte de seus colegas e médicos e enfermeiros que os atenderam.
“Restou-nos ainda um ano. Durante esse ano, ele foi morrendo aos poucos. Piorava a cada dia, e sabia que os seus companheiros estavam morrendo. Nós já vivíamos com isso. Com essa espera”, diz Valentina Apanassiévitch, esposa de um liquidador (profissionais que lidaram com limpeza das regiões contaminadas). “Falam de Tchernóbil, escrevem sobre Tchernóbil. Mas ninguém sabe o que é. Aqui, agora, tudo é diferente: nascemos e morremos de outro modo”.
Partindo de relatos e pontos de vista pessoais, Aleksiévitch mostra o que o acidente provocou na população. Camponeses tiveram que abandonar suas casas para nunca mais voltar; pessoas se acostumaram com uma expectativa de vida menor do que 60 anos de idade; crianças aprenderam a viver mais em hospitais do que em casa; mortes repentinas se tornaram comuns. Além de tudo isso, não são apenas os fatos pessoas que ficam registrados - as opiniões e sentimentos dos entrevistados são uma questão central da obra.
Os relatos levantam também discussões sobre questões políticas e culturais: quem foram os culpados? O que deve ser feito? O governo lidou corretamente com a situação? Essas perguntas são respondidas de não só de maneiras diferentes, mas muitas vezes contraditórias.
A autora
Sem a preocupação de narrar uma história oficial do acidente, Aleksiévitch atua como uma coletora de histórias. Sua voz como jornalista aparece apenas em um texto introdutório intitulado “Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tcherbóbil desafia a nossa visão de mundo”. Depois disso, seu trabalho de entrevista e seleção de textos se torna quase invisível - ainda que tenha levado 20 anos para completar o trabalho.
Aleksiévitch nasceu em 1948 e começou a trabalhar como repórter assim que saiu da escola. Aos poucos, consolidou seu estilo de usar depoimentos de testemunhas de vários fatos históricos importantes, como a Segunda Guerra Mundial e a queda da URSS. A autora publicou seu primeiro livro em 1985 e o texto fala sobre o papel das mulheres durante períodos de guerra.
O desastre nuclear de Tchernóbil
No dia 26 de abril de 1986, foi registrado um incêndio na central elétrica da Usina Nuclear de Tchernóbil, na cidade de Pripyat, na atual Ucrânia. O problema aconteceu quando funcionários da estação realizavam testes no reator. Os reais motivos do acidente, assim como o impacto que teve, ainda não foram confirmados.
A radiação emitida durante o acidente e nos dias seguintes aumentou em 78 vezes os casos de câncer na região atingida e afeta a vida de pessoas até hoje. Só Bielorrússia teve 485 aldeias contaminadas e evacuadas. Além disso, o acidente recebeu a classificação máxima de risco na Escala Internacional de Acidentes Nucleares.