Detalhe dos olhos da escritora Maria Valéria Rezende.| Foto: Mônica Câmara/Divulgação

Abaixo, leia a entrevista com a freira e escritora Maria Valéria Rezende, autora de “Quarenta dias”, romance que venceu o prêmio Jabuti de 2015.

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“Outros cantos” parte de suas memórias do tempo em que trabalhava com educação de base no Nordeste, nos anos 1960, durante a ditadura. Como foi essa experiência?

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Do final dos anos 1960 até os anos 1990, lidei com educação popular, que não se resume à alfabetização. É parte de um processo complexo de ajudar as pessoas a refletir sobre o mundo a partir de suas próprias experiências. Trabalhávamos com pessoas que, naquela época, quase não tinham comunicação com o mundo, e queríamos ajudá-las a combater a visão fatalista de que quem nasce pobre vai morrer pobre. Era uma luta muito grande, porque havia um conformismo induzido, alimentado por séculos com uma linguagem religiosa de quem dizia que essa era a “vontade de Deus”. Muitas vezes, no sertão, tive que convencer os pais a deixar os filhos irem à escola, porque diziam que estudar era desculpa para não trabalhar. Hoje, muitas daquelas crianças são doutores ou professores universitários.

Você falou sobre o fundo religioso do conformismo. Mas seu trabalho com educação foi dentro de uma corrente da Igreja que pregava o engajamento social. Como era a atuação da Igreja nessa época?

O discurso conformista sobre a pobreza vem do período colonial, mas não é só da Igreja, e sim de toda a sociedade brasileira, profundamente injusta, que se serviu do discurso religioso para pacificar sua consciência exploradora. Nunca falo “a Igreja”, porque é um termo muito amplo. Havia bispos a favor e contra a ditadura. Quando partimos para essa missão de desaparecer em meio ao povo, como o fermento na massa, quem nos deu cobertura foi a Igreja, que acolheu inclusive muitos que não tinham fé. Justamente por falarmos desde essa posição tínhamos mais condições de combater o ranço conformista revestido de linguagem religiosa que promovia a acomodação das pessoas. Mostrávamos que a Bíblia também pode ser revolucionária, quando lida de forma que a aproxima do cotidiano do povo. É o contrário do tipo de pregação que hoje se espalha no Brasil, desvinculada dos processos sociais e históricos, com uma leitura fundamentalista da Bíblia que toma o texto ao pé da letra.

A personagem de “Outros cantos” relaciona o sertão nordestino a outros “desertos” que conheceu durante o exílio, na Argélia e no México. Você também passou por esses lugares. Como foi reviver as memórias da ditadura escrevendo o romance?

Não quis fazer um livro de memórias, porque acho chato. Autobiografias se passam por verdadeiras, mas no fundo são ficção. Então preferi dar a forma de um romance e ficar livre para reinventar tudo. A protagonista não tem nada da minha personalidade, não sou uma sonhadora, e as histórias que ela conta são inventadas. Mas o percurso dela é emprestado do meu. E a figura que aparece ao longo do romance com várias formas, um homem que a protagonista nunca sabe se é a mesma pessoa, tem a ver com uma experiência forte que vivi durante a ditadura.

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Qual?

Escondi muita gente e ajudei muita gente a sair do país. As pessoas se apresentavam com um nome, mas sabíamos que era falso, e bastava raspar as sobrancelhas para que ficassem irreconhecíveis. Eram pessoas sobre quem eu não sabia nada, mas que colocavam as vidas nas minhas mãos. E eu colocava minha vida nas mãos delas, porque se fossem pegas podiam me entregar. Não existe relação mais íntima do que essa, quando duas pessoas que não se conhecem confiam suas vidas uma à outra e depois nunca mais se veem.

Em que momento você precisou sair do país?

Em 1972, a congregação me mandou para um trabalho na Europa. Entendi que a intenção era me manter lá para proteger a mim e às irmãs. Levei os originais datilografados das cartas de prisão de Frei Betto. Antes de viajar, fiquei um mês na casa do meu avô, em Belo Horizonte, transcrevendo as cartas com a ajuda de frades dominicanos. Frei Betto escrevia com uma letrinha miúda que só se lia com lupa. Mandava as cartas dentro de um cinto, que a gente trocava com ele durante as visitas no presídio de Tiradentes. Logo que cheguei à Itália entreguei os originais para a editora, que publicou o livro antes de ele sair no Brasil. Aí minha vida se complicou, porque as embaixadas eram vigiadas. Fiquei um tempo na Argélia, depois fui para os EUA, onde me sustentava dando cursos sobre Paulo Freire. Desci de ônibus até a Cidade do México e voltei ao Brasil por Manaus, para não chamar a atenção. Depois voltei a dar aulas no sertão.

Acredita que o trabalho de quem se dedicou à educação de base durante a ditadura é lembrado hoje?

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Muitos da nossa geração optaram pela luta armada ou pela militância cultural, outros seguiram o caminho da educação. Fomos milhares. Nos últimos anos, por conta da Comissão da Verdade, o Brasil se lembrou de presos, torturados, exilados, censurados, mortos. Mas não se falou tanto de quem, acreditando que a mudança só podia vir da organização popular, sumiu no meio do povo para fazer esse trabalho, cuja condição de sucesso era a invisibilidade. A gente lê nos livros de História que, na segunda metade dos anos 1970, surgiram no campo movimentos populares e sindicatos que ajudaram a enfraquecer a ditadura. Dito assim, parece geração espontânea. Mas é fruto do trabalho de pessoas que ficaram invisíveis para combater a ditadura nas periferias e nos campos, e que, de certa forma, continuam invisíveis.