Daniel Galera é figura de destaque da sua geração literária desde a época em que eles ainda nem tinham se dado conta de que eram uma “geração”. Hoje, aos 37, livros e prêmios depois, Galera está preocupado. Preocupado com o mundo, com os rumos de uma sociedade inteira, sim, e preocupado também com o que houve com aquela sua geração.
“Meia-noite e vinte”, seu quinto romance, é fruto dessa preocupação. Um retrato geracional, é verdade, mas também uma reflexão ponderada (e alusiva, como cabe à literatura) sobre o ponto em que estamos eu, você e o mundo.
Através de capítulos narrados por vozes diferentes, o livro acompanha um recorte da vida de um grupo de amigos porto-alegrenses que, depois de separados por carreiras, famílias e vidas, se reúnem precisamente porque um deles, o mais brilhante, morre de forma bárbara numa rua da capital gaúcha.
Cardosonline
Se no livro existe a newsletter cultural “Orangotango”, Daniel Galera participou na virada do milênio da histórica newsletter literária Cardosonline, que reunia diversos aspirantes a escritores gaúchos, em sua maioria estudantes de jornalismo e publicidade. Participaram do projeto, além de Galera, gente como Clarah Averbuck e Daniel Pellizzari.
A própria morte gratuita, inexplicável e inexplicada de “Duque” ilustra o que são os elementos desse impasse: uma sociedade que ronda a barbárie, onde transita um grupo de pessoas com uma formação cultural sólida, muito desejo de “fazer” e, a essas alturas, já passada a juventude, sem qualquer convicção quanto ao que tenham alcançado e ainda possam alcançar.
Jovens, eles tinham participado de certa cena cultural da virada do milênio, especialmente graças à criação de uma espécie de newsletter cultural (o “Orangotango”) que definiu parte do perfil e dos desejos daquele grupo. Galera esteve de fato envolvido na criação do “Cardosonline”, mítico órgão semiguerrilheiro que cumpriu exatamente esse papel naquele momento, naquela cidade. E é dessa imbricação de um envolvimento pessoal com os temas e fatos com que lida e da abordagem disciplinadamente distanciada que os anos de trato com o romance lhe proporcionaram (e não de qualquer interesse confessadamente “autoficcional”) que surge o que possa haver de mais tocante, de mais impactante no romance.
Os três personagens principais falam em primeira pessoa, contam sua história, porque de fato é disso que trata o livro: de dar a eles esse direito ou, em certo sentido, essa obrigação. Eles precisam se entender.
É desafiadora a situação em que se encontram hoje aqueles indivíduos? A realidade com que eles têm que se haver?
Claro.
Eles “se venderam” ao capital, como o hoje enriquecido Antero. Eles capitalizaram seu talento, como o agora jornalista Emiliano. Eles divergiram (será?) dos seus sonhos literários como a cientista Aurora.
Mas e se Antero, depois de se ver envolvido numa manifestação de rua, passar a suspeitar que no fundo ainda é um guerrilheiro? E se Emiliano aceitar escrever a biografia do antigo amigo e transformar de vez aquele passado em mercadoria comercializável?
E Aurora, a pesquisadora séria que convive com o mundo cruel do assédio, com a dura e mesquinha realidade de quem quer explicar essa mesma realidade através dos mais objetivos dos mecanismos? E Aurora, que ao mesmo tempo é fascinada desde menina pela dita criptozoologia, o estudo de animais fantásticos, fantasiosos, míticos e inventados?
Seria fácil olhar para esses “meninos” e rir. Seria fácil também envernizar de lirismo sua postura e de cinismo seu lugar no mundo, agora. Mas o olhar do romance livro é mais difícil, mais raro e mais generoso. Irresolvível, sim, como o mistério do último caminho de Duque… mas de alguma maneira afirmativo.
Num texto que condensa tempos, gerações, distâncias e impasses, é talvez a sombra, a possibilidade da beleza o que reste como alento, como motor para a vida e a literatura. É o aceno para o incompreensível, para o quase inaceitável, que permite que o livro que se abre com um parágrafo todo dedicado ao grotesco de um dia quente numa cidade suja se encerre num gesto narrativo encantador, incompreensível, mas presente.
Uma espécie de nascer do sol, diante dos teus olhos.