Questão da mulher vem à tona junto com a memória de Ana C.| Foto: /Divulgação

“Essa nasceu escritora”, dizem amigos em depoimentos sobre a curta obra da poeta Ana Cristina Cesar. A carioca costumava ditar suas ideias para a mãe e professoras antes mesmo de saber escrever.

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Sua produção literária, pequena em quantidade de volumes lançados, será explorada durante esta edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que começou nesta quarta-feira. A autora é a homenageada deste ano e, junto de seu universo extremamente confessional, vem à pauta a Poesia Marginal dos anos 1970 e a presença feminina na literatura.

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“Acho que como Ana representa de forma bastante forte a questão da mulher, e as novas gerações estão muito ligadas nesse tema, ela vai, além de oferecer uma poesia bela e atemporal, tocar num nervo político bastante quente e oportuno”, acredita a ensaísta e crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda.

Ana C., como era conhecida pelos amigos, lançou apenas um livro em vida: “A Teus Pés”, em 1982, um ano antes de se atirar pela janela do apartamento dos pais, em Copacabana, aos 31 anos. Sua carreira seguiu então seu curso postumamente, em edições e redescobertas dos jovens leitores, encantados com a densidade que extrapolava o formato fragmentado de seus poemas. As escritoras Annita Costa Malufe, Laura Liuzzi e Marília Garcia, que compõem a mesa “A Teus Pés”, nesta quinta-feira, ressoam a influência da carioca.

Um a das artes feitas para um dos livros editados na infância de Ana C. 
Ana C. em títulos

Ana Cristina Cesar participou apenas do lançamento de um livro seu, “A Teus Pés”. A publicação da Editora Brasiliense reunia três outras feitas de maneira artesanal, “Cenas de Abril”, “Correspondência Completa e “Luvas de Pelica”, um diário. O poeta Armando Freitas Filho, amigo próximo de Ana, foi escolhido pela família Cesar como curador e organizador de sua obra e destaca o tom confessional que permeia a obra. “Ela era discreta na vida social e muito indiscreta na poesia”, disse em depoimento à cineasta Letícia Simões no documentário “Bruta Aventura em Versos”.

Após a sua morte, Freitas lançou “Inéditos e Dispersos”, em 1985. “Antigos e Soltos”, organizado pelo Instituto Moreira Salles, saiu em 2008. “Poética”, volume da Companhia das Letras de 2013, reúne toda sua obra, em organização também feita por Freitas Filho.

Uma temporada morando em Londres resultou no livro de ensaios “Escritos da Inglaterra”, lançado em 1988.

Como tradutora, adaptou para o português obras de Emily Dickinson e Katherine Mansfield.

Ela foi descoberta por Heloisa, que a incluiu na coletânea “26 Poetas Hoje”, lançada há exatos 40 anos. Era uma estudante da PUC do Rio, que desde a infância formatava seus próprios escritos, com capas criadas por ela, antes mesmo de o termo Literatura Marginal vir à tona. “Adorei imediatamente os textos dela, nos encontramos, e virou uma amizade intensa, infelizmente interrompida por sua morte precoce”, conta a crítica, que vai compor a mesa “De Clarice a Ana C.” com Benjamin Moser, no sábado.

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Geração Mimeógrafo

A Poesia Marginal, representada também por Torquato Neto, Roberto Piva, Waly Salomão, Chacal, Cacaso, Nicolas Behr e o curitibano Paulo Leminski, se fortaleceu em plena ditadura militar. Esses poetas, de alguma maneira, não eram motivo de preocupação para os censores. “Percebi que a poesia jovem estava chamando pouca atenção da censura e exprimia com criatividade os sentimentos dessa ‘geração do sufoco’”, conta a crítica literária.

A poeta, porém, subverteu até mesmo a ordem do processo de composição dos contemporâneos. As poesias eram impressas em mimeógrafos (copiadora manual muito utilizada nas escolas até os anos 1980) e distribuídas a preços módicos, sobretudo em eventos culturais.

Ana C. também usava estêncil e álcool para imprimir seus escritos, mas ela era uma perfeccionista e não se encaixava no improviso. “A diferença entre ela e os outros poetas é o trabalho no texto. O artesanato rigorosíssimo e o cuidado na composição do texto é oposto à criação que se queria descartável e improvisada dos marginais. O que os une é o ethos geracional profundo que tanto Ana como os demais poetas daquele momento expressaram e experimentaram”, avalia Heloisa.