| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Se você tem a intenção de vir a Portugal, não coloque nenhum gerúndio na mala. Não precisará dele, seja em qual estação for. Uma temporada aqui serve para que nos livremos do estoque de gerúndios. Estás a entender?

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O acordo ortográfico, que não foi muito bem aceito por estas bandas, não consegue mais do que padronizar as diferenças materiais da língua. Aliás, das línguas portuguesas. Um casal de Setúbal – terra de excelente moscatel – me disse que Portugal é um pequeno concentrado de países. A paisagem muda muito rapidamente. E também as maneiras de falar.

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Por ter filho pequeno, tivemos que providenciar material escolar. Nas grandes lojas, este tipo de coisa fica numa seção deliciosamente chamada “Manualidades”. Procurei a atendente e pedi um apontador. Não sabia o que era. Expliquei, fazendo o gesto de apontar o lápis, na mímica típica de quem não domina o código local. Ela então me explicou que eu na verdade desejava um aguça. Comentei isso com um colega, que me corrigiu: aguça é só aqui no norte; em Lisboa, é afia. As três palavras partem do mesmo princípio, o substantivo derivando (opa!) do verbo, mas de três verbos diferentes para definir a mesma ação: apontar, aguçar e afiar.

Por aqui também há a rivalidade norte / sul. Você tem que elogiar a cidade do Porto e imediatamente Lisboa, se não quiser tomar partido. As duas, sem dúvida, encantadoras. Já ouvi de certo autor importante a frase: “Eu, como escritor do norte...” Não falemos, portanto, genericamente em escritores portugueses, é preciso demarcar a região onde ele é produzido, tal como o excelente vinho do país. Um amigo de Póvoa de Lanhoso me relatou que sua professora primária dizia, brincando, que Portugal começava na margem esquerda do Rio Minho e terminava na margem direita do Rio Douro. Para baixo a terra se chamava Lisboal, com uma ilha no meio – Coimbra.

Só em Lisboa(aliás, no bairro de Belém) é que há pastel de Belém, na pastelaria (confeitaria para nós) que resgatou a receita do convento local e a registrou. Fora de lá, o que se come é uma nata ou natinha. Se não foram feitos em Belém, como podemos comer um pastel de Belém de outro sítio? Todos, no entanto, maravilhosos.

Não se fala no sábado passado, por exemplo. Mas no passado sábado. Esta inversão do adjetivo gera estranhamento, tal como os interruptores dos banheiros (na verdade, casa ou quarto de banho), que ficam do lado de fora. Vejo nisso alguma relação misteriosa com a mudança do lugar das palavras. Tudo funciona mais ou menos igual, mas tudo é diferente.

Há palavras cotidianas, ditas em situações formais que, no Brasil, seriam escatológicas. As três palavras mais comuns aqui são: seca (pronuncia-se séca) para algo chato, desagradável; giro para bonito; e fiche para legal, chique.

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O acordo ortográfico, portanto, unifica pouco e resta meio sem sentido. Há diferenças semânticas, sintáticas e fonéticas entre os idiomas falados mesmo dentro de cada um dos países lusófonos, porque um idioma é um ritmo, um tom, uma dança das palavras, que muda conforme a região. É este desacordo que permite que transitemos por códigos estrangeiros sem sair do ventre da nossa língua.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. O mais recente é o romance “A Segunda Pátria”, pela Intrínseca. Ele vive em Braga e escreve a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta.