Depois de três meses mergulhado numa das mais célebres histórias de terror de todos os tempos, “Frankenstein”, cuja tradução concluí há alguns meses e sai agora na coleção de clássicos da editora Penguin-Companhia das Letras, certa madrugada – horário em que traduzi o livro, ignorando o bom senso e conselhos de amigos e familiares – fui conferir a recente versão do monstro que, numa sofisticada miscelânea do gênero, aparece na série de tevê “Penny Dreadful”. Só pra ver se dava medo – o medo que, posso garantir, não senti em momento nenhum da tradução, madrugadas adentro. Não é bravata, mas simples falta de afinidade com histórias de terror – elas não me comovem. Nunca comoveram. E, portanto, não me assustam.
O que não me impede de reconhecer, sem hesitar, que “Frankenstein”, escrito por uma jovem Mary Shelley, então com menos de 20 anos, no início do século 19, é um clássico total. Ao menos na minha definição particular do que seja um: aquele livro que, não importa em que versão – ou tradução – e a que distância de sua publicação original, continue dizendo coisas importantes e interessantes, universalmente.
Mas ser capaz de elaborar sobre o que é um clássico, e com uma definição de minha própria lavra, não leva automaticamente a saber como se faz para, também de próprio punho, reescrever um clássico – para todos os efeitos, trata-se de outro texto – um ou dois séculos depois, em outra língua, para leitores futuros e contemporâneos.
(E agora que penso nisso: esses leitores de hoje, com seus e-books e tablets, são eles próprios leitores futuros – de um futuro muito longínquo daquele 1818, ano em que o livro estreou – que nem Mary Shelley, escritora de pródiga imaginação, poderia ter concebido quem e como seriam.)
Por onde começar uma empreitada dessas?
“Frankenstein ou o Prometeu Moderno”. Mary Shelley. Tradução de Christian Schwartz. Penguin-Companhia das Letras, 424 pp., R$ 34,90.
Primeiro, pelo básico, e que tento fazer para qualquer tradução: ler alguma coisa mais do mesmo autor(a) e, ainda, o que se escreveu sobre ele ou ela – no caso de Shelley, um baú infindável de crítica. Mas apenas os textos presentes na edição da Penguin-Companhia – uma alentada introdução e notas de Maurice Hindle, especialista da Open University, e um delicioso posfácio do jornalista Ruy Castro – já me serviram perfeitamente como guias iniciais. Recomendo a edição, e muito, por isso.
Equilíbrio
Devidamente equipado com o aparato crítico para uma interpretação informada do texto – e uma tradução é isso também, senão principalmente –, o tradutor não escapará, porém, ao difícil embate de seu ofício.
É que, ao contrário do que se possa pensar à primeira vista, a tradução, porque sempre uma interpretação em circunstâncias diversas das que cercaram a publicação original, não é a “simples” transposição de uma língua à outra – o que, por si só, jamais poderia mesmo ser simples, dada a complexidade em se definir “língua”: de qual registro linguístico exatamente estamos falando, pra começar?
Na tradução de clássicos, uma das dificuldades é justamente encontrar o equilíbrio certo entre a fidelidade a um uso da língua (especialmente nos diálogos) que pode soar estranho ao leitor de hoje e as exigências de fluência na língua atual, no seu registro “moderno”. Não se trata de “simplificar” o original, mas justamente de traduzi-lo!
A transposição, em outras palavras, se dá no tempo, no caso dos clássicos sobretudo, e isso é um complicador a mais.
Também é algo inusitado, para o tradutor, que o texto já tenha outras versões – e não falo de adaptações, que, no caso de Frankenstein, são incontáveis, enquanto se contam mais de uma dúzia de traduções propriamente ditas publicadas no Brasil.
As mais antigas – que consultei apenas por curiosidade, sem que influenciassem meu trabalho – precisaram achar seu próprio equilíbrio entre o registro do texto original e o que era o português da época em que foram feitas. Certamente haverá diferenças entre essas versões e uma nova.
E, ao contrário de colegas tradutores com quem converso, que preferem nem olhar outra versão para não “contaminar” a sua, posso dizer que cotejar minhas soluções com as de traduções mais recentes de “Frankenstein” foi de grande ajuda. Mais: fiz isso enquanto traduzia, com essas outras versões ao alcance da mão, na mesa de trabalho, procurando sempre a síntese que fosse a melhor solução, nos momentos em que a coisa embatucava.
Por fim, um clássico, além das traduções anteriores, por ser clássico ainda terá outras. Minha tradução de Mary Shelley para a Penguin-Companhia é a resposta que encontrei hoje, segunda década do século 21, no Brasil, a esse texto fundador da literatura gótica e, reafirmo, um clássico universal.
Espero que sirva ao leitor meu contemporâneo. Mas de uma coisa não se escapa, em tradução nenhuma: prazo de validade. Traduções envelhecem, não tem jeito.
Espero estar vivo para ver a minha caducar – antes de mim, tomara! – e não me tornar um velho tradutor reclamão que rejeite as que vierem substituí-la.
Que sejam melhores (ou, no mínimo, adequadas à sua época) e eu possa admirá-las.
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