Além do status de clássicos da música brasileira, o que mais têm em comum “Jura”, do autointitulado rei do samba Sinhô, na voz intimista de Mario Reis, “Com que Roupa?”, o primeiro sucesso de Noel Rosa, e “Se Você Jurar”, de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, um dos primeiros exemplos do samba batucado com que a chamada turma do Estácio revolucionou o gênero?
As três músicas - a primeira gravada em 1929, a segunda e a terceira, em 1931- foram muito mais importantes para a criação da bossa nova do que você pode imaginar, e por isso figuram, entre outras 600, na incrível cançãografia que Ruy Castro montou para a nova edição revista e ampliada do livro “Chega de Saudade”.
Mas, espere aí. Isso não quer dizer que a bossa nova seja uma decantação de tudo o que se fez antes dela. É um gênero único. “Uma das muitas modalidades que o samba pode assumir. Digamos que seja um samba ritmicamente mais simplificado mas harmonicamente mais complexo”, define Ruy.
A confusão reside na própria riqueza de nossos ritmos. Depois de décadas pensando e estudando o assunto, o jornalista encontrou uma explicação: “A música brasileira dividiu-se em duas grandes águas, a romântica e a de bossa.
Na primeira, mais lenta e dolente, tivemos canções, valsas, modinhas, foxes, serenatas. Na segunda, mais sincopada e sapeca, o samba em suas muitas vertentes: breque, terreiro, exaltação, gafieira e, claro, a bossa nova, o sambalanço, o samba-jazz”.
A cara de João
Para o escritor, a bossa nova era inevitável. E ficou, para a posteridade, mais com a cara de João Gilberto, não por acaso um cultor dos “sambas de bossa” produzidos entre 1929 e 1957, e, antes do próprio João, gravados por outros grandes cantores: Luiz Barbosa, Orlando Silva, Cyro Monteiro, Lucio Alves.
“Se a bossa nova tivesse mais a característica do Tom Jobim, seria mais romântica, ou mais da canção. Se fosse pelo lado do João Donato, seria mais caribenha. Se fosse o Johnny Alf, muito mais jazzística do que acabou sendo”, acredita Ruy.
Autor de outro grande mergulho no mesmo período musical, ”A Noite do Meu Bem: a História e as Histórias do Samba-Canção”, ele considera que uma obra completa a outra. “São gêmeos siameses. Têm o mesmo projeto editorial e são semelhantes até no peso. O ideal é que fossem lidos em sequência.”
O livro lançado no fim do ano passado comprova a teoria das águas musicais: “Mostro que antes que existisse o ambiente ideal para seu desenvolvimento, que foram as boates, o samba-canção já existia. E mesmo depois da bossa nova, que para muitos o teria sepultado, ele continuou a existir, embora não chamado por esse nome”.
O novo “Chega de Saudade”, além da cancãografia, traz aquela é que provavelmente a maior discografia da bossa nova. Títulos que, por sorte, podem ser quase todos acessados na íntegra pela internet.
O autor não mexeu na estrutura da primeira versão nem acrescentou histórias. Cronologicamente, o relato vai de 1948, em Juazeiro, onde João Gilberto ouvia “Naná” na voz de Orlando Silva, até o início de 1967, quando saiu o álbum “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”.
O escritor deu uma limpa no texto: reparos em datas e lugares e a retirada de expressões datadas e outras que, na edição original de 1990, vinham grafadas em itálico. “Não tirei o sabor do estilo com que o livro foi escrito. Mas ficou mais simples e sedutor, que é o que procuro hoje.”
Chega de Saudade
Ruy Castro
Companhia das Letras
504 pp
R$ 75.
Em 1975, quando trabalhava na Bloch Editores, Ruy Castro costumava sentar-se em bancos do Aterro do Flamengo, ao lado de João Máximo (também jornalista, autor da biografia de Noel Rosa). Sonhavam, os dois, com os livros que, um dia, escreveriam.
“Estávamos lendo a biografia do Cole Porter escrita por Charles Schwartz e nos perguntávamos: como ele fez? Ora, conversando com as pessoas certas.”
Foi o caminho adotado em “Chega de Saudade” que, na época do lançamento, era uma perfeita novidade em matéria de abordagem, estilo e tratamento para livros com temas musicais. Hoje, virou paradigma.
Além de conversar com os principais nomes do universo bossa-novista como Tom Jobim (nasceu com ele o estalo do livro, durante uma entrevista para a “Playboy”), João Gilberto (mais de cinco longos papos, ao telefone, de madrugada), Johnny Alf, João Donato, Ronaldo Bôscoli (a maior fonte), Roberto Menescal, Carlinhos Lyra e Nara Leão, Ruy privilegiou o que ele chama de “sinfonia de informantes”.
Entre os quais estão figuras menos conhecidas como o violonista Candinho (marido de Sylvia Telles), o pintor Cravinho (amigo do peito de João Gilberto nos tempos da Bahia), o compositor Pacífico Mascarenhas (que revelou a estada de João em Diamantina e o dramático parto da famosa batida de violão), Jonas Silva (crooner dos “Garotos da Lua” e vendedor nas Lojas Murray).
“Foi o Mário Telles, irmão da Silvinha Telles, que me falou pela primeira vez das Lojas Murray e de sua importância na formação dos garotos que fizeram a bossa nova. Uma, até então, insuspeita escala do movimento no centro do Rio, antes da explosão em Copacabana”, lembra Ruy
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