O jornalista paranaense Laurentino Gomes diz crer na ideia de que a concepção da sociedade brasileira está intimamente ligada às nossas raízes africanas e ao uso da mão de obra cativa, que dominou publicamente a estrutura de trabalho em nosso país por mais de três séculos.
Por isso, e também por defender a percepção de que a escravidão no Brasil carece de relatos menos preconceituosos e distorcidos, Gomes anunciou, no início do mês, que já deu os primeiros passos para explorar o tema, que deve sair como uma nova trilogia assinada por ele em 2019.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o autor comentou sobre a ideia do novo trabalho e a maneira como encara as críticas de historiadores e acadêmicos que censuram a incursão de outros profissionais no trabalho de pesquisa histórica do Brasil. “Por sinal, já tem gente criticando o fato de eu ter decidido escrever uma nova trilogia sobre a escravidão, isso antes mesmo de eu iniciar as pesquisa”, diz.
O autor
Laurentino Gomes escreveu 1808, que fala sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil; 1822, que trata do processo de independência; e 1889, cujo tema é a implantação da república brasileira. Agora, o maringaense quer, literalmente, fazer história com uma nova série de livros-reportagem sobre escravidão – assunto que assombra o país até hoje e que, para Gomes, é considerado o mais importante da história do país.
Seu novo projeto é uma coleção de livros para falar sobre a escravidão no país. Em resumo, você pode contar o que já tem decidido sobre a obra e as etapas de produção?
Essa é uma ideia que foi crescendo ao longo da trilogia 1808, 1822 e 1889. Nos três livros eu tratei bastante da escravidão. Quando a corte de Dom João chegou ao Rio de Janeiro, em 1808, de cada três brasileiros um era escravo. O tráfico negreiro era na época o maior negócio do Brasil e, talvez, até de Portugal, mobilizando milhares de pessoas e centenas de navios nas costas nos dois lados do Oceano Atlântico. Os homens mais ricos do Rio de Janeiro eram todos traficantes de escravos e foram os que mais deram contribuições a corte portuguesa, tanto com dinheiro quanto com apoio politico. Na Independência, o Brasil rompeu os vínculos com Portugal mas manteve inalterada a situação social até então vigente. Uma tentativa de José Bonifácio de Andrada e Silva [um dos personagens do episódio da independência] de acabar com o tráfico negreiro foi um dos motivos para o fechamento da Constituinte em 1823. Há uma sensação de orfandade da Independência brasileira porque os escravos viram que as ideias libertárias defendidas pelos brancos na época não os incluiam. O Brasil foi o último pais do hemisfério ocidental a acabar com o tráfico, em 1850, e o também o último a abolir a escravidão, em 1888. A principal consequência foi a queda da monarquia e a Proclamação da República no ano seguinte. Tudo isso foi me convencendo de que era preciso escrever uma nova trilogia.
Sem a escravidão o Brasil de hoje simplesmente não existiria. A escravidão é um fantasma que nos assombra até hoje porque nos recusamos a estudá-lo e encará-lo mais a fundo.
O que você pensa a respeito das críticas de historiadores acadêmicos sobre os trabalhos de história feitos por jornalistas?
Acho que essas críticas são fruto de mero preconceito e da defesa territorial de determinadas áreas do conhecimento dentro da academia. Por sinal, já tem gente criticando o fato de eu ter decidido escrever uma nova trilogia sobre a escravidão, isso antes mesmo de eu iniciar as pesquisa e a quatro ou cinco anos de publicar os livros. Como é possível alguém me criticar sem ao menos se dar ao trabalho de entender qual é o meu projeto e qual será o resultado dessa pesquisa? Isso só pode ser fruto da intolerância, ou mesmo da ignorância, que reina em certos círculos corporativistas acadêmicos. É como se, por eu ser jornalista, eu estivesse proibido de escrever sobre assuntos que os historiadores julgam ser de seu domínio exclusivo. Se entendem tanto desses temas, por que não escrevem em linguagem simples e didática, em benefício de milhões de leitores que se interessam pela história do Brasil, como eu procuro fazer? Acredito que o isolamento e a falta de leitores seja um preço alto que a academia paga pela sua arrogância e pelo hermetismo na linguagem que usa em seus trabalhos. A minha contribuição ao estudo de história do Brasil é de linguagem. Tento ser simples e fácil de entender. Ninguém precisa sofrer para estudar história do Brasil. Felizmente, essas críticas já foram mais fortes no passado. Hoje, uma boa parte dos historiadores, especialmente aqueles que eu mais admiro, já entenderam que o meu papel não é banalizar ou desqualificar o estudo de História, mas contribuir para o aumento do interesse por essa disciplina.
Ao jornal Folha de S. Paulo, você disse que, agora, abordará o assunto “mais importante de toda a nossa história”. Por que essa classificação?
Esse é um tema ainda muito mal tratado na historiografia brasileira, repleto de preconceitos e distorções. Eu acredito que seja, sim, o tema mais importante de toda a história do Brasil. Tudo o que nós já fomos, somos hoje e seremos no futuro gira em torno das nossas raízes africanas e do uso da mão de obra cativa. Sem a escravidão o Brasil de hoje simplesmente não existiria. Foi a maneira encontrada por Portugal para ocupar e explorar uma colônia 91 vezes maior, em extensão geográfica, do que a pequenina metrópole. As consequências são profundas. Joaquim Nabuco [diplomata e historiador brasileiro] dizia que não bastava abolir a escravidão, era preciso também educar, dar terras e oportunidades para os ex-escravos, de modo a incorporá-los na sociedade brasileira como cidadãos de plenos direitos. Isso jamais aconteceu. Basta ver as estatísticas atuais sobre as diferenças tratamento e oportunidade entre negros e brancos em todos os níveis e aspectos da sociedade brasileira, e também a polêmica que envolve políticas públicas como as cotas para estudantes negros nas escolas e universidades. A escravidão é, portanto, um fantasma que nos assombra até hoje porque nos recusamos a estudá-lo e encará-lo mais a fundo.
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