Não se fala em outro assunto nas rodas literárias portenhas. Na semana passada, o jovem escritor Pablo Katchadjian – cujo sobrenome impronunciável é quase tão excêntrico quanto o vetusto bigode que ostenta – foi processado pela justiça argentina por fraudar a lei de propriedade intelectual, crime que prevê pena de até seis anos de reclusão.
O motivo, tão risível quanto genial, foi lançar-se a um experimento literário que consistia em “engordar” um dos célebres contos de Jorge Luis Borges (1899-1986), acrescentando-lhe quase 6 mil palavras. “El Aleph Engordado” saiu em 2009 pela pequeníssima Imprenta Argentina de Poesía, do próprio Katchadjian, em uma tiragem de singelos 200 exemplares vendidos a 15 pesos – a maioria distribuída gratuitamente entre amigos. O autor, que também leciona na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, teve seus bens embargados no valor de 80 mil pesos, mas ainda pode recorrer da sentença.
Processos envolvendo direitos autorais são frequentes, mas este é considerado escandaloso por ao menos três motivos: o primeiro, por se tratar de um experimento que não rendeu qualquer lucro financeiro a seu autor (enquanto os direitos da obra de Borges foram comprados recentemente pela Random House Mondadori por 2 milhões de euros); o segundo, por ser uma clara ode à obra do autor morto em 1986, como explicarei adiante. E o terceiro pela absoluta falta de bom senso da denunciante do caso: ao processar Katchadjian, a insana viúva de Borges estaria atestando o que há anos especula-se sobre sua pessoa: María Kodama jamais entendeu a obra do próprio marido.
“Ela não é escritora, editora, crítica, nem professora: apenas uma viúva, e esta é sua profissão”, ataca o crítico espanhol Antonio Jiménez Morato no texto “Boicot a Borges”, que circulou na internet por estes dias. Espécie de Yoko Ono das letras argentinas, solenemente detestada pela imprensa de seu país, a dama de olhinhos puxados é a única herdeira universal deste que é considerado não só o escritor mais importante da terra do tango, como, para muitos, o maior do século 20 – e não apenas entre os hispânicos.
Como lembrou o advogado de defesa do caso, Ricardo Straface, é um desatino a viúva processar o bigodudo por intervir artisticamente em um conto que pode ser lido na íntegra em pelo menos 50 sites gratuitos. “Parece uma jogada de War: Japão ataca Armênia”, brincou, em depoimento à revista “Tónica”.
Segundo Straface, que também é escritor, “El Aleph Engordado” é uma “operação de vanguarda que segue a tradição da arte contemporânea, como a Mona Lisa de bigode do Duchamp”. Uma das estratégias de defesa foi pedir que Katchadjian escrevesse um breve ensaio explicando ao juiz o que é ready-made, intertextualidade e vanguarda histórica com exemplos que, por supuesto, incluíam Borges. Outra estratégia foi convidar escritores renomados para depor a seu favor. Beatriz Sarlo já teria aceitado. César Aira também.
Publicado pela primeira vez em 1945 na revista “Sur”, “O Aleph” narra a descoberta de um “objeto secreto e conjetural” que contém dentro de si o espaço cósmico infinito, e que poderia ser contemplado do sótão de um casarão da Rua Garay, deitando-se nas lajotas e fixando os olhos no 19.º degrau da escada. Trata-se de um relato fantástico, inicialmente disfarçado de drama amoroso, mas que no fundo é uma crítica muitíssimo irônica ao pedantismo na literatura.
À certa altura do conto o narrador recorda que, quando criança, costumava admirar-se por as letras de um livro não se mesclarem durante a noite, quando fechado. Ao mesclar as frases de Borges às suas, Katchadjian propõe um interessante jogo metaliterário que, a meu ver, o teria divertido e lisonjeado.
Apropriação, intertextualidade, ready-made, palimpsesto. Conceitos pós-modernos que poucos escritores souberam explorar tão bem quanto Jorge Luis Borges. Dono de vasta cultura literária, o antigo bibliotecário costumava se orgulhar mais dos livros lidos que dos escritos. Em “Borges, um Escritor en las Orillas”, Beatriz Sarlo define a estética borgiana como a “teoria da escrita como escrita de leituras, não como escrita de invenções”. Tamanha erudição – aliada a um senso de liberdade total e a um talento enorme para re-significar as obras e autores que leu – forjou um de seus traços singulares: o de promover diálogos com a produção anterior, não raras vezes questionando, saqueando e ironizando a propriedade intelectual.
Em “Pierre Menard, Autor do Quixote”, um de seus relatos mais emblemáticos, Borges conta a história de um suposto escritor e tradutor francês que se propõe a escrever, a seu modo, o “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes. Não, ele não queria criar um novo Quixote – “o que seria fácil” –, mas o Quixote. Para isso, pretende dominar o espanhol do século 17, recuperar a fé católica, guerrear contra mouros e turcos, esquecer a história da Europa entre 1602 e 1918. Mas logo descarta esses procedimentos como sendo fáceis demais: “Ser, no século 20, um romancista popular do século 17, pareceu-lhe algo menor. Ser, de algum modo, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo – por conseguinte, menos interessante – do que seguir sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard”, diz o conto. Assim, o resultado de sua obra é um texto rigorosamente idêntico ao original cervantino, letra por letra. Mas engana-se quem o lê como plágio. “O fragmentário Quixote de Menard é mais sutil e infinitamente mais rico do que o de Cervantes”, escreve Borges.
O trabalho de engorda de “O Aleph”, conforme explica Pablo Katchadjian no fim do livro, teve uma única regra: não excluir nem alterar nada do texto original, nem mesmo sua pontuação. “O texto de Borges está intacto, porém, totalmente cruzado pelo meu, de modo que, se alguém quisesse, poderia voltar a ele a partir deste”. Afinal, se o verdadeiro autor de “O Aleph” é nomeado no posfácio, como pode se tratar de plágio?
Originalmente com cerca de 4 mil palavras e agora com quase 10 mil, o conto remixado ganhou novos personagens, ritmo, cenas, diálogos e, principalmente, deliciosas camadas de humor. Um exemplo: quando Carlos Daneri desce as escadas do porão, abre os olhos e vê o tal Aleph, entende pela primeira vez a Sequência de Fibonacci! Não foram poucos os momentos em que me peguei gargalhando ao cotejar as duas versões do conto.
“Embora não tenha tentado me esconder no estilo de Borges, tampouco escrevi com a ideia de me fazer demasiado visível: os melhores momentos, acredito, são aqueles em que não se pode saber com certeza o que é de quem”, esclarece o (co)autor.
Esta não é a primeira vez que Katchadjian interfere em uma figura canônica de seu país. Em 2007, o autor empreendeu uma tarefa, digamos, cronopiana (para citar outro cânone, Julio Cortázar): reorganizar, com ajuda de uma planilha de Excel, os versos do épico poema argentino de José Hernández. “El Martín Fierro Ordenado Alfabéticamente” também saiu pela Imprenta Argentina de Poesía. Até hoje, nenhum herdeiro do poeta novecentista apareceu – vivo ou morto – para processá-lo.
Este ano, após ler duas novelinhas de Katchadjian, “Qué Hacer” e “Gracias” – ambas inéditas no Brasil, uma lástima –, entendi por que ele é considerado um dos autores mais inventivos da literatura argentina contemporânea. Não à toa, é o único para quem César Aira costuma rasgar uma seda. À sua maneira, e décadas depois, Katchadjian tem proposto jogos literários que remetem aos que Borges propôs no passado. O crítico Antonio Jiménez Morato foi certeiro ao defini-lo com o filho que Borges não teve, mas que gerou, literariamente. “‘El Aleph Engordado’ é a metáfora perfeita daquilo que todo criador faz com a tradição: adicionar gordura e retórica, mas não modificá-la”, escreveu. Resta torcer para que a justiça argentina e a tresloucada viúva entendam o óbvio: o polêmico e engordado livrinho é a melhor homenagem que alguém poderia fazer ao mestre Jorge Luis Borges.
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