Preste atenção na seguinte frase: “Nas nossas montanhas, só nasciam meninos, e alguns deles se transformavam em meninas aos 11 anos”.
Se, em um primeiro momento, você relacionou a informação com o homossexualidade, desconsidere. A frase é uma das mais perturbadoras do livro Reze Pelas Mulheres Roubadas, da romancista mexicana Jennifer Clement, lançado recentemente no Brasil.
A história é cruel. Mas, mais cruel que a história, é saber que os episódios narrados não se limitam apenas à ficção. Eles são fatos do cotidiano no México, baseados na realidade bárbara do desaparecimento de mulheres no país. Segundo o Observatório Cidadão Nacional de Feminicídio do México, são mais de 9 mil desaparecidas em somente nove estados.
Dados oficiais não dão como certos os paradeiros, mas, para a população que vive de perto esse cotidiano, não é necessário esperar sequer o início de alguma investigação para saber onde elas foram parar. Mulheres vítimas do narcotráfico, roubadas de suas famílias para integrarem redes de exploração sexual dentro dos limites do próprio país são um dos principais problemas enfrentados no México desde há muito tempo.
E é esse mundo tirano, regido por um poder paralelo tão forte quanto o reconhecido, que serve como retrato de Reze Pelas Mulheres Roubadas. O livro conta a realidade de muitas jovens mexicanas pelo olhar de Ladydi (tal como o da princesa), personagem profunda e delicada que tem sua vida assombrada pela possibilidade iminente de ser arrancada de casa para nunca mais voltar.
“Quando nasci, minha mãe me anunciou aos vizinhos e às pessoas no mercado que havia nascido um menino. ‘Graças a Deus é um menino’, disse”.
A mentira que conta a mãe de Ladydi é mais que lógica: anunciar aos quatro ventos o nascimento de um filho homem, menos suscetível ao tráfico, é uma das únicas estratégias de segurança de que dispõem as famílias que vivem no interior do México.
Livro
Jennifer Clement. Tradução de Léa Viveiros de Castro. Rocco, 240 pp., R$ 39,50 (e-book: R$ 25,50).
Por isso, a nova obra de Jennifer Clement configura-se como uma história de luta pela sobrevivência, que mostra, em partes, o horror enfrentado pelas mulheres de seus país. A personagem Ladydi nasceu num povoado de Guerrero, mesmo estado onde, no ano passado, 43 estudantes de uma escola da zona rural foram assassinados por narcotraficantes locais.
Neste ambiente hostil retratado pelo livro, a jovem convive com as amigas Paula, Estefani e Maria (meia-irmã dela), todas criadas para tentar fugir do destino traçado para meninas como elas. Além de serem meninos até 11 anos de idade, quando a natureza já não consegue mais se camuflar, esses meninos então tinham que “se transformar em meninas feias, que às vezes tinham que se esconder em buracos no chão”.
9,2 mil
É a quantidade de mulheres que seguem desaparecidas apenas em nove estados do México, segundo o Observatório Cidadão Nacional de Feminicídio. Somente no estado do México, o mais populoso do país, entre 2011 e 2012, 955 jovens desapareceram.
Feias, sim. Vaidade, para elas, aumentava o risco de serem sequestradas. Não bastassem os cabelos cortados, práticas como esfregar lápis pretos nos dentes para que parecessem podres era comum entre as amigas. “Não há nada mais nojento do que uma boca suja”, costumava dizer a mãe de Ladydi, abandonada pelo marido – mais um exemplo de como vivem muitas famílias no México, em que os homens viajam para os EUA em busca de uma vida melhor e deixam para trás esposas e filhos.
Por mais que tentem, o roubo de mulheres não fica em um plano apenas passivo na obra. Paula, a mais bonita das amigas, “tão bonita como a Jennifer Lopez”, é levada em uma temida SUV, carro característico dos narcotraficantes que, mais próximos do que se imagina, acabam levando Ladydi para a prisão.
Reze Pelas Mulheres Roubadas não é uma narrativa amedrontadora. Contada a partir de uma perspectiva delicada, tal como a personagem narradora, a história revela personagens que não são apenas vítimas. São pessoas que, apesar de ameaçadas por um destino brutal, amam, sonham e resistem.
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