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 | Robson Vilalba
| Foto: Robson Vilalba

A primeira vez que ouvi falar em “O Gigante Enterrado” de Kazuo Ishiguro fiquei intrigado. O primeiro livro de fantasia do autor em uma carreira de 33 anos.

Uma mudança interessante na trajetória de Ishiguro, embora ficção científica e histórias de época tenham aparecido em seus outros livros.

Aqui, no Brasil, seus livros não emplacaram, o mais conhecido é “Resíduos do Dia” e talvez o seja por causa da adaptação cinematográfica.

Mas, lá fora, principalmente no Reino Unido, Ishiguro tem uma carreira sólida com prêmios e seu nome frequenta as listas de escritores influentes e importantes.

Duas coisas me atraíram no último livro: a primeira era ver como ele usou o gênero da fantasia e a segunda era acompanhar a recepção de “O Gigante Enterrado” pela crítica brasileira.

Antes de poder ler o livro, vi no jornal uma crítica. Fiquei animado. O texto falava sobre como Ishiguro trabalha o esquecimento, como escolhemos o que esquecer para construir um relacionamento ou uma sociedade.

Parecia promissor, a crítica encarava o romance como um livro e não um “livro de fantasia”. Acreditem, isso faz uma enorme diferença.

A dificuldade está em perceber que a fantasia não é um fim, mas um meio, uma ferramenta que escritores usam para contar suas histórias (talvez alguns escritores de fantasia se esqueçam disso também).

Você não pode esperar que a fantasia sustente sua história, ela por si só não é suficiente. Por mais que mundos secundários sejam sedutores, é preciso de tramas, personagens e todo o resto como qualquer livro de ficção.

O Gigante Enterrado

Kazuo Ishiguro. Tradução de Sonia Moreira. Companhia das Letras, 280 pp., R$ 39,90.

A crítica me deixou mais curioso para começar a ler o livro, talvez fosse um pequeno passo para acabar com um preconceito que a fantasia enfrenta desde sua criação.

As primeiras páginas foram bem, a leitura avançava bem e me prendia.

Contudo, alguma coisa me incomodava e eu não consegui dizer o que era. Como se um ruído estivesse atrapalhando a leitura, algo fora do lugar.

Há um tempo, vi que a escritora Ursula K. Le Guin falou sobre o livro. Resolvi consultar o texto dela.

O artigo da Le Guin na verdade era uma resposta a uma entrevista que o Ishiguro deu sobre o livro.

Lá pelas tantas, Ishiguro diz: “Será que os leitores me seguirão? Será que entenderão o que estou tentando fazer, ou serão preconceituosos contra os elementos da superfície? Eles irão dizer que isso é fantasia?”.

Antes de terminar de ler a resposta da Le Guin, percebi o que me incomodava em “O Gigante Enterrado”.

O ruído. As questões que Ishiguro coloca em sua entrevista demonstram como ele se sente em relação à fantasia. Desconfortável, inseguro e de certa forma constrangido. E isso fica claro no livro, a fantasia é apenas um elemento superficial. Um floreio.

Mas vamos ao que Le Guin disse. Ela apresenta a resposta de forma brilhante.

“Parece que o autor [Ishiguro] leva a palavra [fantasia] como um insulto. Para mim, isso é um tremendo insulto, reflete um pensamento tão preconceituoso, que precisei escrever uma resposta. A fantasia é provavelmente a ferramenta literária mais antiga para se falar sobre a realidade. ‘Elementos de superfície’ – que imagino que sejam ogros, dragões, cavaleiros arturianos, barqueiros misteriosos etc. – acontecem em certas obras literárias de grande mérito literário como ‘Beowulf’, ‘A Morte de Arthur’, e ‘O Senhor dos Anéis’ e também são imitados em livros mais comerciais. Sua presença ou ausência não é o que constitui a fantasia. A fantasia literária é o resultado de uma vívida, poderosa e coerente imaginação criando impossibilidades plausíveis aliada a uma história vívida, poderosa e coerente, como as mencionadas antes ou em ‘A Odisseia’ ou ‘Alice no País das Maravilhas’.”

E aí está. Não há fantasia, era isso que me incomodava. Ou melhor, não é porque uma história contém dragões ou magia que se trata de fantasia. Ishiguro parece ignorar tal fato. E, depois de ler o livro, as críticas, a entrevista de Ishiguro e o texto de Le Guin, restou apenas uma dúvida. O que levou Kazuo Ishiguro a escolher a fantasia para contar a história? Algo que ele considera negativo e apenas como elemento de superfície? É difícil arriscar uma resposta.

Sem perceber, com “O Gigante Enterrado”, Ishiguro acaba revelando um retrato do que a fantasia representa para os escritores e críticos que não estão acostumados com ela. É como se ela fosse um gigante enterrado, incompreendido por uma maioria que prefere esquecê-lo. É mais fácil deixar a terra por cima do que se assustar com o tamanho e a profundidade do que há lá embaixo.

Sigo lendo o livro, quero saber como vai terminar. Ishiguro é um bom contador de histórias. Mas o interesse diminuiu.

Depois que se descobre que a fantasia é apenas um “elemento superficial”, uma parte do encanto se quebra.

Acredito que Ishiguro esteja feliz porque, decididamente, ele não escreveu um livro de fantasia.

Thiago Tizzot é autor dos livros “Três Viajantes”, “O Segredo da Guerra” (sob o pseudônimo Estus Daheri) e “A Ira dos Dragões”, este último com ilustrações de John Howe. Todos os livros foram publicados pela Arte e Letra, de Curitiba.
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