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“Que pergunta o senhor ainda não respondeu um milhão de vezes sobre sua reportagem ‘Frank Sinatra Está Resfriado’?”

Fiz esta indagação em 96 letras no telegrama que enviei ao jornalista Gay Talese .

A esperança era falar com ele por meio analógico, pois Talese é notoriamente avesso à tecnologia, inatual como as polainas que veste. Queria saber se havia algo novo a dizer sobre seu trabalho mais famoso, que completa 50 anos neste mês: o texto “Frank Sinatra Está Resfriado”, publicado pela revista Esquire em abril de 1966.

A pergunta remonta àquela que Talese se fez quando recebeu do editor Harold Hayes a tarefa de escrever um perfil do cantor, no outono de 1965.

Então com 33 anos, Talese já tinha passado do anonimato à fama em dez anos como repórter do The New York Times. O perfil era o primeiro trabalho para a Esquire, e ele relutou em aceitá-lo. Sinatra costumava tratar mal a imprensa e Talese temia ser confundido com um repórter de celebridades.

Mas quando o assessor de Sinatra, Jim Mahoney, garantiu que o cantor aceitaria uma entrevista, Talese superou as dúvidas e voou para Los Angeles.

Chegou no domingo, 31 de outubro. Alugou um carro, se hospedou no luxuoso hotel Berverly Wilshire, preparado para encontrar Sinatra na manhã seguinte.

Na hora marcada, Mahoney disse a Talese que Sinatra estava resfriado e que não poderia recebê-lo tão cedo. Talvez nunca. O resto é uma história de cinco décadas.

Judô

Como um lutador de judô, Talese usou a força do oponente contra ele mesmo. Diante do obstáculo crucial – a falta de acesso ao personagem — criou a mais célebre das reportagens tangenciais.

Sem falar com Sinatra, Talese procurou obstinadamente qualquer pessoa relacionada ao cantor que topasse falar.

Com a polpuda verba da revista (as despesas de Talese somaram cerca de US$ 5 mil, algo como US$ 37 mil em valores corrigidos, o dobro do que recebeu pelo texto), passou seis semanas no encalço do cantor em bares, clubes noturnos e sets de filmagem. Assim, fez o mais completo perfil de Sinatra sem ter falado com ele.

O artigo se transformou em ícone do jornalismo literário, união das técnicas do jornalismo com as da literatura, que teve se auge a partir de textos produzidos por nomes como Tom Wolfe, Norman Mailer, e Hunter Thompson.

Sujeitos que saiam às ruas não para fazer literatura, mas achavam boas maneiras de escrever sobre o que viam. O perfil de Sinatra é até hoje adotado pelas escolas de comunicação.

Editor da coleção Jornalismo Literário da Cia. das Letras, o jornalista Matinas Suzuki Jr. define o estilo como um “balão solto no ar entre o chão do jornalismo e o céu da literatura”.

Ao contrário do descartável jornalismo do dia a dia, os textos de jornalismo literário são perenes e lidos com interesse renovado por sua narrativa peculiar.

Para o repórter Geneton Moraes Neto, o texto de Talese é “ponto de referência” do jornalismo de observação. “Uma reportagem como essa mostra que a sensibilidade jornalística do repórter é um valor absoluto”, diz.

Geneton ressalta que um jornalista burocrata diria que a “matéria caiu” porque Sinatra não quis falar. “Um editor derrubador de matérias babaria de tédio e trataria de jogar a pauta no lixo. Um bom repórter faria como Talese: pintaria um retrato do personagem a partir da observação do universo que o cercava”, analisa.

Talento

Não há, porém, unanimidade sobre a inovação trazida por Talese. O jornalista e biógrafo Ruy Castro considera exagerados os 50 anos de confetes que o perfil vem recebendo.

Para ele, o “macete” da entrevista ‘sem sujeito’ é, com más ou boas intenções, praticado desde que o jornalismo deixou de ser apenas artigo opinativo e incorporou a prática da reportagem no século 19. “Qualquer foca (repórter novato) sabe que, se um personagem não quer falar, a saída é procurar as pessoas em volta, os amigos, os desafetos. E um texto arrumado salva a falta de informação”, afirma.

Autor de uma longa entrevista com Talese em 2012, Geneton acha que, ao contrário, o texto cresceu sem as “aspas” do cantor. Para ele o texto reproduz o que há de melhor em Sinatra, o talento. “Sinatra, até onde se sabe, não era um entrevistado brilhante. Não se conhece nenhuma grande declaração feita por ele. Se tivesse falado, não teria dito nada de extraordinário”, diz.

Quanto à resposta de Talese, fico devendo. Como diz o jargão jornalístico, até o fechamento desta edição ele não retornou o telegrama.

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