Ao mesmo tempo em que Bob Dylan se diverte fazendo versões de clássicos da canção americana e se esquivando da Academia Sueca, sua obra - em escrito - ganha edições ao redor do mundo, com o luxo por parte das editoras de estampar na capa o selinho: Prêmio Nobel de Literatura. No Brasil, dois livros seus agora se acrescentam ao “Crônicas - Volume Um”, que a Planeta reimprimiu ano passado.
“Tarântula” (Tusquets) - o romance experimental que ele lançou no início dos anos 1970, seu único livro de prosa publicado até aqui -, e “Letras (1961-1974)” (Companhia das Letras) - a reunião de textos que, afinal, lhe rendeu a distinção máxima da literatura mundial.
Os livros, coincidentemente, são traduzidos por uma dupla de irmãos de Curitiba, cujo sobrenome se tornou uma referência na tradução do inglês nos últimos anos: Rogério e Caetano Galindo, ambos colunistas da Gazeta do Povo.
Rogério - o irmão mais novo - topou o desafio de traduzir “Tarântula”: um livro esquisito (o trecho destacado acima é o início do texto), cuja única edição brasileira era da Brasiliense, dos anos 1980, feita na época por Paulo Henriques Britto. “É um livro esquisito mais do que é difícil”, diz Rogério, que além de tradutor é jornalista da Gazeta. “Mas quando o leitor percebe que não precisa entender, tirar um sentido único daquilo, aí se sente mais à vontade e lê mais tranquilamente.” No prefácio à edição brasileira, Valter Hugo Mãe classifica a obra de “urgente exercício de vanguarda” e “exercício melódico de recuperação de algum esplendor ao jeito de Rimbaud”. Segundo Galindo, a tinta esotérica de Tarântula permite interpretações diversas, não rígidas.
Caetano - o irmão mais velho, doutor em linguística e professor da UFPR - traduziu as letras do período mais brilhante do compositor - o segundo volume está previsto para o ano que vem. “Tirando casos bem pontuais, as letras se traduzem muito bem para hoje. Não foi uma questão pensar que essas letras eram velhas, datadas. A gente vive o mesmo tipo de modernidade hoje em dia, Dylan está vivo”, diz. Depois de um período imerso nas canções, ele afirma entender perfeitamente como as gerações mais novas criaram uma relação profunda com as músicas, escritas há 50 anos.
Embora menos aclamado, “Tarântula” ajuda a compreender os porquês da devoção, na opinião de Rogério: “Apesar de ter essa coisa beatnik, ele tem uma marca própria e essa capacidade de sobrevivência, também”. Para ele, a nova tradução pode fazer o leitor do século 21 se aproximar mais da obra - “com todo o respeito e a bênção de Paulo Henriques Britto”. Terceiro tradutor do “Ulysses” de James Joyce no Brasil, Caetano concorda e explica: há uma temporalidade diferente entre originais e traduções. “As traduções em geral envelhecem mais rápido, com exceções.” Retraduzir o livro, portanto, não seria refazer o trabalho, mas oferecer uma nova opção.
Autor: Bob Dylan
Tradução: Caetano Waldrigues Galindo
Editora: Companhia das Letras (640 págs., R$ 89,90)
Autor: Bob Dylan
Tradutor: Rogério Waldrigues Galindo
Editora: Tusquets
(136 págs., R$ 36,90)
“Bob Dylan não é Chico Buarque, no qual você consegue ver perfeitamente a métrica da letra, rimas complexas, ferramentas da poesia”, compara Caetano, comentando a opção por traduzir as letras priorizando o sentido semântico, e não necessariamente a forma - “o que não quer dizer mais ou menos qualidade”. As letras de Dylan tendem a ser mais narrativas, aspecto que foi preservado na tradução. “Queríamos que as letras dissessem o que tinham pra dizer.”
E o que exatamente é isso? Dylan deu raras entrevistas na carreira comentando as próprias músicas - em uma entrevista, chegou a ironizar que elas eram “about 4 or 5 minutes”. “São mais ‘tipos’ de canções”, diz Caetano. “Anedotas e crônicas; a canção surreal humorística, meio alucinada; as coisas mais evocativas. Mas o espectro dele é bem mais amplo do que as canções pop de amor comuns.”
Teor autobiográfico
A vida urbana americana, porém, com forte teor autobiográfico, é um ponto de contato entre vários dos escritos de Dylan no período. “No caso do Tarântula, o narrador parece um cara doidão de ácido vendo Nova York e tentando relatar o que está passando”, diz Rogério. “Quase tudo gira em torno dessa ideia maluca que é viver amontoado com milhões de pessoas num espaço limitado.” A política - tema caríssimo ao período mais vigoroso da composição de Dylan - aparece de relance no romance, com a devoção que o compositor nutre pela música negra americana. Aretha é a primeira palavra de “Tarântula” - Leadbelly é outro artista referenciado o tempo todo. “A segregação racial aparece várias vezes.”
“Esse é um tema bem recorrente na produção dele”, diz Caetano sobre a questão racial. “É muito louco: um judeu vindo da cena folk tão preocupado com isso. Em algum momento, ele parece quase obcecado. Como não poderia deixar de se esperar de uma pessoa inteligente nos EUA naquela época.”
Caetano confessa que nunca foi um grande fã de Dylan, então o trabalho de tradução das letras foi também uma aproximação, que lhe permitiu perceber pérolas talvez negligenciadas ao longo do tempo. “Fiquei chocado com a variabilidade, em quanto ele nitidamente muda de projeto de um disco para o outro.” Duas ficaram marcadas: “Eternal Circle” (“Através de um disparo de luz / O rosto dela refletia / As palavras que logo sumiam / Ao correrem da minha língua / Com um olhar telescópico / Seus olhos estavam em chamas / Mas a canção era longa / E ainda havia o que cantar”); e “Visions of Johanna” (“Não é a cara da noite vir com truques quando você está tentando fazer tanto silêncio? / Estamos ali naufragados, apesar de fazer o melhor pra negar”).
Essa é a terceira vez que os dois irmãos trabalham “juntos”: páginas de Beckett e Saul Bellow já passaram pelas suas mãos em conjunto. Dessa vez, foi coincidência. “O tradutor é um tipo bem específico de nerd”, diz Caetano - sua filha, Beatriz, de 19 anos, também já entrou no ramo. “A tradução literária é um lugar em que há uso para toda a cultura inútil que você acumulou durante a vida.” Rogério complementa, com um sorriso: “e os caras ainda pagam”.
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