“Dizem-me que Curitiba é uma cidade que funciona bem, e que conta com um povo um bocado frio. Vamos ver. Daqui a pouquinho estarei aí”, arrisca o escritor português José Luís Peixoto, de um hotel em São Paulo. O vencedor do prêmio Saramago em 2001 pelo romance Nenhum Olhar é o convidado da terceira edição do Festival Literário Litercultura, evento que acontece no Sesc da Esquina às 18h30 deste sábado (9), com entrada franca.
Ao lado de Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares – convidados dos anos anteriores -- Peixoto é um dos renovadores da prosa portuguesa contemporânea. Sua prosa vai de aldeias alentejanas a espaços urbanos mergulhados numa espécie de agonia do tempo. Sua poética crispada é volta e meia atravessada por elementos fantásticos e simbolismos oníricos.
Peixoto também é o autor de Cemitério de Pianos, Uma Casa na Escuridão (ambos pela Record), Livro, e o recém-lançado Morreste-me, narrativa sobre a morte de seu pai. Foi a primeira obra escrita pelo português (aos 21 anos) e o último publicado no Brasil, pela editora gaúcha Dublinense. O tema da palestra é “apocalipses cotidianos.” E a morte de alguém muito próximo não deixa de ser um exemplo desse catastrofismo inesperado, como o português afirma na entrevista a seguir. “Escrever realmente sempre envolve uma análise, e essa análise precisa de uma certa distância para acontecer. Nesse caso em particular, não foi muito fácil. Estava a viver o que se passava no livro.”
Por que o tema “apocalipses cotidianos”?
Na verdade não fui eu quem escolheu este nome. No evento, vou apresentar meu livro, Morreste-me. Ele fala sobre o luto e a morte de meu pai. Esta questão é um pequeno apocalipse cotidiano. Uma daquelas situações que se passam na vida das gentes, e temos de lidar com elas querendo ou não. Este livro foi o primeiro que escrevi, aos 21 anos; o primeiro que publiquei, aos 25. E adquiriu muita importância na minha escrita.
Escrever é difícil. Escrever sobre esses temas tão pessoais torna-se um desafio ainda maior?
Sim. Mas o curioso é que em Portugal este livro atingiu dezenas de milhares de leitores. Por isso fico contente com esta edição brasileira. Depois de minhas experiências aqui [é a sexta vez de Peixoto no país, “sou amigo de Cristovão Tezza, diz], sempre achei que o livro poderia encontrar muitos leitores. É bom perceber que as pessoas entendem o que estou a dizer, mesmo que trate de uma área como essa, do luto, da perda de alguém. É preciso haver uma partilha cultural muito íntima para que isso possa ser bem compreendido. E na verdade não tinha a consciência de que estava a escrever um livro. O que fiz foi escrever um texto que foi evoluindo. Depois de quatro anos, cheguei à conclusão de que nada mais que eu pudesse escrever ficaria bem ao lado daquele texto, porque ele tinha características muito especiais, muito únicas. Escrever realmente sempre envolve uma análise, e essa análise precisa de uma certa distância para acontecer. Nesse caso em particular, não foi muito fácil. Estava a viver o que se passava no livro. Seria muito difícil escrever sobre o meu pai e não pensar no meu pai. Mas também acho que esse trabalho literário foi uma ajuda boa, particular, para que encontrasse um sentido em tudo aquilo. Escrever é sempre organizar. Encontrar elementos que compõem determinadas questões, ordená-los e colocá-los em suas dimensões corretas e proporcionais. De alguma forma, o livro me ajudou a encontrar apaziguamento numa situação como essa, que é sempre muito delicada.
SIM exibe trabalhos de Rodrigo Torres a partir de sábado
Trompe-l’oeil, nova individual do artista visual Rodrigo Torres, que reúne cerca de 30 obras que abordam a construção de “lugares fictícios” pode ser vista a partir das 10 horas do sábado (9) na SIM Galeria
Leia a matéria completaVocê é um dos nomes desta nova cena literária portuguesa, ao lado de Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares e José Eduardo Agualusa. Há algo em comum: vocês parecem cavoucar o passado, mergulhar na sua história e na do seu país, inclusive, para recriar a escrita, e nos fornecer um mundo novo na forma, mas talvez não no conteúdo.
Pois sim. Um aspecto que também é importante é que nos conhecemos bem. A primeira vez que vim ao Brasil, em 2003, foi com o Valter. Nós crescemos todos juntos. Começamos a publicar mais ou menos ao mesmo tempo, e nossos caminhos se comunicam. Há também aspectos concretos dos quais compartilhamos. Em Portugal, os três [Gonçalo, Peixoto e Valter] receberam o prêmio José Saramago. Isso dá uma mostra de quanto nenhum de nós procurou uma ruptura em relação às nossas gerações anteriores. Todos assumimos as experiências de autores como José Saramago e António Lobo Antunes, ou de outros autores portugueses também marcantes. Apesar de tudo, há marcas individuais fortes, que tem a ver com outro aspecto do qual compartilhamos: a questão histórica. Nós fazemos parte da primeira geração que não viveu a ditadura em Portugal [Peixoto nasceu em setembro de 1974, e o regime salazarista caiu em abril do mesmo ano]. Isso é importante. O Lobo Antunes, por exemplo, tem uma obra marcada pela guerra colonial na Angola. Nós não vivemos isso. Fazemos parte de uma geração que sempre conviveu com a democracia.
Na literatura, isso é sinônimo de liberdade também?
Sim, isso nos proporciona certo tipo de liberdade literária. Podemos escolher nossos caminhos. Escrever sem peso na consciência. Meus temas, por exemplo, são famílias, e a região do Alentejo [centro-sul de Portugal], onde nasci. O Tavares, por sua vez, é mais cerebral, analítico. O Valter trabalha até com a metafísica, navegando por áreas nunca cobertas pela literatura portuguesa. Seu último livro [A Desumanização] se passa na Islândia.
Como está a relação entre a literatura brasileira e a portuguesa? Parece haver ainda muito folclore e preconceito de ambas as partes, apesar de uma aproximação recente.
Essa comunicação precisa existir. Forçosamente também pelo contato real. Os livros têm de ser lidos. Os autores têm de ser conhecidos. Essa circulação tem se efetivado muito em questões práticas como essa do Litercultura. Em encontros, festivais. Tudo isso tem ajudado, é um incentivo. Para quem escreve em português, estar aqui no Brasil é uma oportunidade de conhecer muita literatura que interessa. Mas vamos ver: efetivamente, Portugal tem menos capacidade de absorver toda a literatura que é feita no Brasil. Muitas vezes até acho que o próprio Brasil tem dificuldade de reconhecer a própria literatura. Porque é muito grande. Mas estamos a atravessar uma boa fase. Nos anos 90, num momento de menos contato, em que houve uma pausa grande nessa vontade de aproximação, havia poucos autores a serem acompanhados no Brasil. Do outro lado, o Saramago sempre teve muita força. Entrar numa livraria no Brasil é uma experiência incrível, porque a oferta é imensa. Só tenho pena de que a voracidade do mercado faça com que os livros passem pelo leitor de maneira muito rápida.
Que autores brasileiros você lê neste momento?
Há diversos escritores muito interessantes. Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, João Paulo Cuenca, Tatiana Levy, Daniel Galera.
Valter Hugo Mãe, em um vídeo publicado há pouco tempo, diz que acorda, procura escrever, volta a dormir, acorda, olha para o teto, tenta entender o teto e procura escrever. Você tem um método?
Ao longo da minha vida, já tive rotinas diferentes. Neste momento, gosto de escrever durante o dia. E tenho uma rotina de trabalho bastante próxima daquilo que outras pessoas têm em outras áreas de trabalho. Horários normais de atividade. Horário de expediente. Em outros momentos, escrevi pela noite. Atualmente não é assim. Tenho rotina, o que me ajuda porque efetivamente escrever é manter um esforço contra uma certa forma de caos. A rotina tranquiliza-me. Ajuda-me a que o tempo seja um elemento controlado, mais amigável. No momento em que o tempo era mais selvagem, também tinha de surfar essas ondas, de encontrar um caminho no meio desses mares. Hoje felizmente estou numa fase tranquila. Isso é muito positivo para a escrita. E tem efeito na minha produção: desde 2010 até agora, só houve um ano em que não publiquei em Portugal.
Escrever é isso, “um esforço contra o caos?
É tentar encontrar um sentido no caos. Aquilo que acontece na escrita é dar forma a algo que, na realidade, existe sem uma forma concreta. Estabelecer os contornos disso com palavras. Esculpir. Muitas vezes é um esforço que nos põe em caos. É exigente ao nível de nossas próprias convicções e emoções. E, por isso, há sempre esses confrontos com a realidade e com nós próprios.
O que seria a literatura, então?
É um patrimônio do ser humano na sua busca de compreender-se. E de encontrar respostas para questões que, em certa medida, nos ensinam. A busca da literatura é a busca de todo o conhecimento. É a procura da verdade. Por muito ingênua que essa expressão possa parecer, é isso que está em causa. Parece-me mesmo que a literatura é a busca pela verdade, que é algo inalcançável por natureza. No entanto, há muitas coisas inalcançáveis e não é por isso que paramos de persegui-las: o amor, a liberdade, a felicidade.
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