Exageros à parte, as credenciais são instigantes: Juan Emar (1893-1964) foi considerado por Pablo Neruda o “Kafka chileno”.
Ao ler Um Ano, joia redescoberta pela editora Rocco e publicada na coleção Otra Língua – que também editou o ótimo O Boxeador Polaco, do guatemalteco Eduardo Halfon –, a sensação é de que é isso mesmo. E um pouquinho mais. Porque a realidade criada por Emar é mais radical do que absurda. Mais estonteante e surreal do que inacreditável.
Um Ano é um livro esquisito. Espécie de diário escrito por um narrador anônimo, oferece 12 textos. O ponto de partida de todos é o primeiro dia de cada mês, em ordem cronológica. E sempre com a palavra “hoje” precedida de um verbo no passado: “Hoje amanheci; hoje vivi; hoje reli...”
Embebidas em uma prosa simples e funcional, os contos (?) desprezam conceitos de realidade e identidade. Por fim, acabam por criar um tempo único, que em nada tem a ver com aquele 1935, ano em que foi publicada a obra. Tampouco com este 2015 também inacreditável.
Para além do absurdo, seus temas são humanamente risíveis. Numa sala, o narrador equilibra um disco de vinil no dedo indicador da mão esquerda. Ele o põe para rodar. Então canta junto com Caruso. E a casa, de repente, se enche de música. É a realidade do avesso, em forma de um surrealismo maníaco.
Num outro texto de início de mês, uma traça monstruosa perfura o papel à procura da primeira letra da primeira palavra da primeira linha do primeiro canto de Les Chants de Maldoror, prosa poética do Conde de Lautréamont (1846-1870), não por acaso inspiração literária declarada de surrealistas como Salvador Dalí e Marcel Duchamp.
Juan Emar. Rocco. 128 pp., R$ 24,50.
Em setembro, o litoral. A meditação em frente às ondas, às rochas e ao cachorro que late dura mais de uma hora. E o resultado... “O homem, pelo seu tamanho, ocupa, mais ou menos, o ponto médio entre o átomo e a estrela; por isso, para ele é mais ou menos igual se ocupar do infinitamente pequeno ou do infinitamente grande.”
Um dos melhores textos acontece em novembro. O tom é de crônica. O narrador ama Camila desenfreadamente. Mas, ao telefone, Camila ri desse amor com “um risinho precipitado, agudo e penetrante como alfinetes em guizos.”
O que acontece é que o telefone gruda na orelha do infeliz, que ouve infinitamente a zombaria da moça. “Hoje fui operado da orelha e do telefone.”
Juan Emar é pseudônimo de Álvaro Yáñez Bianchi. Além de Um Ano, o chileno publicou as novelas Miltín (1934), Ayer (1935) e o volume de contos Diez (1938). A partir de 1940, trabalhou até a morte em sua obra-prima Umbral, calhamaço de 5,5 mil páginas publicado na íntegra somente em 1996.
O reconhecimento de Emar aconteceu tardiamente, na década de 1990, quando seus livros ganharam novas edições no Chile e na Argentina.
Atualmente considerado um “novo clássico” latino-americano, a graça melancólica de Juan Emar foi recebida com silêncio da crítica e total indiferença do público à época de seu lançamento, no início do século passado.
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