“Na última vez que estive em Nova York”, escreveu Karl Ove Knausgård na revista do New York Times, num relato de sua viagem pelos Estados Unidos, “um escritor norte-americano bem conhecido me convidou para jantar... fiquei desesperado tentando pensar em algo para dizer. Não era possível que não tivéssemos algo em comum, éramos da mesma idade mais ou menos, ganhávamos a vida do mesmo modo, escrevíamos romances, apesar de que a qualidade dos romances dele era consideravelmente maior do que a dos meus. Mas não, eu não consegui pensar em nenhum assunto... Quando voltamos para a Suécia, recebi um e-mail dele. Ele pedia desculpas por ter me convidado para almoçar, disse que tinha se dado conta de que isso tinha sido um erro e me pediu para que eu não respondesse ao e-mail. A princípio, não entendi o que ele quis dizer... depois percebi que ele deve ter se ofendido com meu silêncio. Deve ter pensado que eu achava que não valia a pena perder meu tempo conversando com ele”.
Knausgård [a pronúncia é “quenausgórd”] não diz a identidade do escritor norte-americano que almoçou com ele. Mas eu digo: fui eu. É capaz que eu tenha sido o primeiro resenhista das obras autobiográficas de Knausgård que tenha aparecido numa delas. Portanto, estou na posição ideal para julgar o modo como ele usa o material de sua vida para criar suas histórias. Depois que Knausgård me transformou num personagem secundário, eu ganhei uma perspectiva de bastidores para entender como ele faz o que faz.
Minha Luta nos mostra o seu autor envolvido numa multidão de problemas. Knausgård precisa se haver com um pai alcoólatra e tirano, com o próprio desejo sexual, com as exigências castradoras da paternidade moderna, com o tédio e a raiva que acompanham até mesmo um casamento bem-sucedido, com a certeza da morte e, sempre e em toda parte, com um doloroso desconforto social. Mas o romance, com mais de seis volumes e 3,5 mil páginas, é também uma luta literária para conquistar o sonho de Knausgård de um dia escrever “algo de excepcional”. O que é difícil de fazer hoje, porque o mundo já está repleto de histórias.
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Leia a matéria completa“Foi uma crise”, escreve Knausgård perto do fim do segundo livro, “que eu sentia em todas as fibras do meu corpo, uma saturação se espalhava pela minha consciência como se fosse banha, talvez porque o núcleo de toda essa ficção, fosse ela real ou não, era a verossimilhança e a distância que ela mantinha da realidade era constante. Para ser honesto, uma coisa se sobrepôs à outra”. Reagindo a isso, Knausgård saiu determinado a alterar essa distância da realidade, ao submeter sua vida a um close extremo, tratando tudo que aconteceu ou passou por sua cabeça com o mesmo grau de importância. O projeto poderia ser comparado, na pintura, ao fotorrealismo, com a ênfase no excesso de clareza e detalhismo; ou, indo na direção oposta, ao impressionismo. Em ambos os casos, é a mudança de percepção que faz a diferença: a execução é muito simples, mas os resultados são inovadores.
Norueguês escreve com sutileza arrebatadora
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Leia a matéria completaNós que fomos enfeitiçados por Knausgård somos recompensados agora com o quarto livro da série [isso, nos EUA; no Brasil, está saindo o terceiro e o volume quatro é para o ano que vem], o mais fugaz, o mais engraçado e, dada a idade do protagonista, o mais adolescente dos volumes traduzidos até agora. Ele conta a história do ano que Knausgård passou dando aula no norte da Noruega. Na página 117, o livro volta no tempo para descrever os últimos anos no ensino médio, suas bebedeiras, o divórcio dos pais e suas paixonites, antes de voltar à pequena cidade de Hafjord, na página 325, para continuar a narrativa. Não há quebras de capítulo para demarcar essas alterações temporais, o que combina com a proposta do livro de reproduzir o fluxo da memória. Porém, há um enredo. O quarto livro é um romance de busca. “Naquela época, tendo 16 naquele verão, havia só três coisas que eu queria. A primeira era uma namorada. A segunda era ir para a cama com alguém. A terceira era encher a cara... Não, pensando bem, havia uma só. Eu queria ir para a cama com alguém. Era a única coisa que eu queria.”
O problema não é a falta de oportunidade. As meninas se atiravam no jovem – e bonitão – Karl Ove, mas, devido a um caso extremo de ejaculação precoce, ele não conseguia chegar aos finalmentes. Seus fiascos são um motivo cômico do romance, porém nunca são usados para arrancar risadas fáceis, porque todas essas ocorrências são carregadas de uma forte intensidade de sentimento e uma sinceridade que nos pega de surpresa e com a qual não tem como não simpatizar.
O ponto alto da vida de Knausgård, em meio às longas trevas de inverno, é sua escrita. Além de sua coleção de discos, o jovem Knausgård traz consigo ao cume do mundo uma máquina de escrever, com a qual datilografa seus primeiros contos. Diferente da maioria dos escritores, ao se lembrar de suas raízes, Knausgård faz mais do que meramente tirar sarro dos seus primeiros escritos. Na verdade, eles parecem bem bons para um jovem de 18 anos e indicam o tom direto e despretensioso que sua obra teria no futuro.
O quarto Minha Luta é também o mais leve da série. As páginas raramente surgem carregadas de texto. Em nenhum lugar vemos aqueles trechos ensaísticos, audaciosos em sua profundidade, à moda da antiga Europa, e cheios de pensamentos associativos brilhantes e originais, que elevam os volumes anteriores. Tudo aqui é dramatizado, cena após cena, todas elas atraentes, mas sem a gravidade dos livros anteriores, sugerindo um período mais leve e despreocupado da vida de Knausgård.
Mas o motivo que leva esses livros a parecerem tão reais é que só há um único personagem principal. Apesar de todos os seus dotes, Knausgård nunca nos deixa qualquer impressão que pareça mais marcante dos outros personagens. Tenho só uma vaga noção de seu pai e sua mãe, apesar de ter lido centenas de páginas sobre eles, e as figuras que ele conhece em Hafjord, seus colegas de profissão, seus alunos e as mulheres por quem se apaixona, tendem a se misturar numa coisa só. Você nunca chega a entrar na cabeça dessas pessoas. É impossível entrar nelas sem alterar o foco do solipsismo de Knausgård. Com a maioria dos escritores isso não funcionaria, porque é difícil achar quem seja atormentado assim, ou sagaz, nobre, impiedoso ou autocrítico como Knausgård. Com ele, essa troca é um negócio que vale muito a pena. A mente dele é tão interessante de habitar que não dá vontade de sair dela, pelo menos não mais do que, na vida real, se possa ter vontade de sair de si mesmo. Um dos paradoxos da obra de Knausgård é que, ao morar de forma tão intensa em suas próprias memórias, ele restaura – eu quase diria sacramenta – as do próprio leitor.
Por mais mágico que seja esse efeito, o método que o cria decepciona um pouco. O que me traz de volta ao meu almoço com o autor lacônico desses livros. Não há nada de incorreto nos fatos que Knausgård relata. Lendo o texto sobre a viagem pelos EUA, porém, pude ver o que é que ele estava fazendo. Knausgård queria traçar uma distinção entre os escandinavos e os americanos no tocante aos hábitos de conversação. Na verdade, o motivo pelo qual não fomos capazes de manter uma conversa tinha menos a ver com diferenças culturais e mais com o fato de que somos duas pessoas nervosas e com problemas de autoestima que não estavam confortáveis uma com a outra. Isso não encaixava com o argumento de Knausgård naquela altura do artigo, no entanto. E, por isso, como qualquer escritor profissional, ele usou a parte da história que lhe servia melhor.
É exatamente isso o que ele faz em Minha Luta. A vida de Knausgård é um sacolão de eventos e recordações, e ele usa o que tem à mão. Ele não mente nem inventa nada (até onde eu sei). Mas o processo de seleção ao qual sujeita suas lembranças para cumprir as demandas da narrativa de sua escrita é elevado a um nível considerável de artifício. Outros escritores inventam. Knausgård rememora. Sua matéria-prima é mais autêntica (talvez), mas os produtos que ela cria não são menos elaborados.
Knausgård encontrou um modo de fazer o leitor suspender a descrença numa época em que essa descrença é, mais do que nunca, difícil de suspender. Mas sua técnica é tão ardilosa que o leitor nem se dá conta.
Na verdade, o domínio de Knausgård dos procedimentos romanescos tradicionais é o motivo pelo qual seus livros não são tediosos, muito pelo contrário – por mais que, na superfície, eles deem a impressão de que deveriam ser. Knausgård está sempre contando uma história, sempre atraindo o leitor para algum envolvimento amoroso, desastre sexual ou crise emocional. Ele dosa certo as quantidades de ambientação, e seu ritmo é impecável. Que coisa maravilhosa é ler um romance experimental que estimula todos os seus nervos ao mesmo tempo em que causa no leitor a mais pura sensação do quanto é incrível a experiência de estar vivo neste planeta – e em nenhum outro.
“Rock-and-roll!”, escreve o jovem Knausgård em seu diário, com 18 anos, tomando coragem para perseguir sua vocação literária. E esse é o espírito do quarto livro: a voz de um rapaz com uma coleção maravilhosa de discos, que sonha ser escritor, escrita pelo grande escritor que ele acabou enfim se tornando.
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