| Foto: Reprodução

Perdi meu pai no ano de 1982. Um longo silêncio se estendeu diante de mim. Trinta e três anos depois, a sombra de meu pai retorna nas páginas de um livro: “Morreste-me”, do português José Luís Peixoto (Dublinense). Leio a novela de Peixoto — seu livro de estreia, lançado em Lisboa em 2000 — com o coração apertado. Luz e escuridão se mesclam nessa narrativa de indisfarçável origem autobiográfica: ela é dedicada à memória de José João Serrano Peixoto, pai do escritor. Foi preciso que o pai morresse para que o escritor pudesse nascer. Hilda Hilst tinha uma explicação forte para isso: “Toda literatura nasce de uma tragédia familiar”.

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A caminho da casa do pai morto, o filho constata: “Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste” É uma viagem fosca, atravessada pela grande sombra da morte. “Viajo no escuro que deixaste e chego finalmente a ti”. Na verdade, é a si mesmo que o narrador chega — o que já se expressa no belo título, “Morreste-me”. A morte do pai é, também, a morte do filho. Daí a urgência do retorno ao passado, da volta a esses resíduos que, se não restauram uma existência, pelo menos a simulam. É noite. “O negro líquido da noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água”. É a primeira noite que o pai não viveu.

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Livro

Morreste-me

José Luís Peixoto. Dublinense, 64 pp., R$ 29,90.

A dor contamina todo o livro, derramando-se pelas frases e impregnando-se nas imagens tensas. O romance abre com três frases vigorosas: “Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”. As lembranças da agonia paterna se misturam à experiência de retorno, lançando o narrador em uma busca ainda mais atormentada. O pai se submeteu ao tratamento da doença — um câncer incurável no abdômen — sustentando a falsa esperança de sobreviver. Desde o início, a dor impôs à realidade a aparência de um teatro. Encenação cruel, ao fim da qual todos os cenários desabaram, restando só uma ausência.

“Comigo, a casa estava vazia. (...) As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios”. O frio também se alastra pelas páginas de Peixoto e nos faz tremer. “Pensei: não poderiam os homens morrer como morrem os dias?” Ao cair da tarde, “pássaros cantam sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo”. A brisa é leve, as folhas dançam, o mundo se move lentamente para a noite. Chega-se, então, ao “silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno”. Por que, na morte dos homens, ao contrário, são tantos os temores? Por que há tanto lamento e tanto alvoroço? Não poderiam os homens morrer como os dias?

Em contraste com a voz muda do pai, reverberam alguns ecos. As coisas, mortas também, se tornam violentas. “Tudo o que te sobreviveu me agride”. As coisas são transpassadas por uma luz fina, “que agora és”. Esse pai transformado em luz persiste como um sol negro. Um sol detido em um intervalo do tempo, luz do que já não há. O que mais nela agride é a imobilidade. É ela, com sua colcha de mentiras, que faz o mundo doer. “Tudo quer e tenta ser igual”. Mas na barriga do mundo há agora um oco, vazio que “quer ser mundo ainda”. Não foi só o filho quem morreu com a morte do pai, a realidade morreu um tanto também.

A linguagem de José Luís Peixoto é dançarina. Só essa linguagem inundada de poesia pode ainda aproximar pai e filho. As horas se embaralham e o filho se vê pequeno, sentado no carro do pai, espremido pelo cinto de segurança, a perguntar quanto tempo falta para chegarem a seu destino. Naquela época, ainda fazia sentido perguntar pelo tempo. Hoje pergunta alguma suporta mais a noção de passagem. Os dois estão retidos em uma zona fixa, na qual só as sombras ainda conseguem se movimentar.

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O filho passa a noite, sozinho, na casa vazia. O ar, então, se enche de perguntas. “Onde estiveste esta noite, pai? Procurei-te para lá da memória, nos cantos que só nós conhecemos, e não te vi”. No quarto, a cama está feita, a esperar o pai que não chegará. O rapaz remexe as gavetas, abre as portas do armário. Busca – o que? Em um impulso, veste as roupas do pai morto. Olha-se no espelho. “No reflexo, encontrei-te, vi-te passar a mão rapidamente pelo cabelo e alisar a roupa no corpo e acertar o colarinho da camisa”. O rapaz olha fixamente a própria imagem. Espanta-se: “Vi-me igual a ti, nas tuas feições firmes”. O pai morto renasce no filho vivo, que agora é seu pai também.

Sem o pai, as coisas perderam a vida. Na mesa de cabeceira, o relógio de pulso ainda marca inutilmente os segundos, “mesmo depois de ti”. O tempo já não serve para nada, é só um traste que devemos carregar. Insistente, o filho coloca o relógio no pulso: “Ainda as marcas de suor, ainda tu”. Em tudo, o pai permanece como nódoa, o que não é suficiente para soprar vida às coisas. Aturdido, o rapaz permanece ancorado ao grande sol negro. “Passei a noite sozinho. Contigo. Perto do silêncio absoluto”.

Resta ao narrador o “vazio que ficou dos gestos que não fazes, das palavras que não dizes, do olhar permanente que tinhas e já não poder ter”. É sobre o nada que o mundo agora se sustente. A noite: o lugar mais oco do mundo. O rapaz sente a morte do pai como um segredo que já não pode contar a ninguém. Nem a si mesmo. Percebe que a morte é o impronunciável. Que ela é algo que não se pode dizer. Se você diz, morto já não está. Só o silêncio contorna a morte.

Logo que amanhece, trêmulo como um fugitivo, o filho deixa a casa paterna. “Ninguém se atreveu nas ruas da minha passagem, só a cal e o sol e as casas permaneceram no lugar onde as conhecemos tantos dias”. Parece já não haver mundo, também, para esse filho que, sob a luz do sol, encarna o pai morto. Esquiva-se como um fantasma. Volta ao cemitério. No mármore frio, resta o nome do pai. “Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, como as coisas que não morrem”. Perfilado diante da campa, o filho se deixa invadir, ele também, pela grande estrela negra, astro paradoxal a emitir uma luz que, se ilumina, também mata.