O que acontece depois do “pode beijar a noiva”? “Destinos e Fúrias”, terceiro livro da norte-americana Lauren Groff, aborda um complicado casamento de 24 anos com personagens complexos e várias camadas narrativas.
O livro de Groff chega no Brasil neste mês já com certa fama. A obra foi finalista do National Book Award, fotografada no Instagram de celebridades como Miranda July e Sarah Jessica Parker, incluída nas listas de melhores livros do ano de vários veículos e indicada pelo presidente Barack Obama como sua melhor leitura de 2015 na revista People. Esta última indicação recebeu a seguinte resposta no Twitter da autora: “Acabei de morrer, voltar para a vida, ler mais uma vez, morrer mais uma vez”, seguido por um “That’s it, I’ll retire” (É isso, vou me aposentar).
Groff divide o livro em duas partes, cada uma dedicada a um dos personagens do casal. A primeira dela, Destinos, narra o ponto de vista de Lotto - apelido de Lancelot - sobre esses 24 anos, enquanto a segunda, Fúrias, se ocupa do ponto de vista de Mathilde. Além do foco no relacionamento, a autora narra também o passado dos dois, quem eram antes de se conhecerem: duas vidas incomuns e improváveis, cada uma triste a sua maneira.
Falência do casamento
A própria autora já afirmou em entrevistas ser cética quando ao casamento (porém ela é casada e tem dois filhos): “casar foi a melhor decisão que já tomei, mas sou ambivalente quanto à instituição em si, enraizada na misoginia e no papel social subserviente atribuído à mulher”, declarou a escritora em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo.
Tanto em sua fala como em seu livro, a autora mostra que ver um casamento como uma união de duas partes distintas é essencial - e nesse sentido, Lotto e Mathilde não poderiam ser mais diferentes. Lotto é filho de uma família rica, com uma fortuna derivada da exploração da água de uma nascente em uma fazenda na Flórida. Sua vida começa a mudar com a morte do pai e a consequente depressão da mãe até que se afasta da família para estudar em um colégio interno durante a adolescência.
Destinos e Fúrias
Lauren Groff
Editora Intrínseca
Trad.: Adalgisa Campos da Silva
368 pgs.
R$ 39,90
Já Mathilde é apresentada como uma orfã bastante sozinha e misteriosa, com uma beleza atípica. Os relatos sobre sua vida e infância só aparecem em uma parte posterior do livro (não se preocupe, permaneceremos sem spoilers). Os dois se conhecem em uma festa da universidade em que estudam pouco antes de se formarem e, duas semanas depois, se casam aos 22 anos.
A união de um homem privilegiado e uma mulher sem mais nada além da relação mostrou algumas dificuldades: privados da fortuna de Lotto, que também tem dificuldades para alavancar sua carreira como ator de teatro, os dois vivem do trabalho de Mathilde em uma galeria de arte. É só depois de alguns anos e em um momento de desgaste emocional que os dois se deparam com a capacidade de Lotto para a dramaturgia - com o apoio da esposa, ele larga a atuação e se torna um aclamado escritor de peças de teatro.
Além das diferenças de formação, os dois mostram características psicológicas diferentes: enquanto Lotto é autocentrado, narcisista e um tanto inseguro quanto a sua carreira, Mathilde é forte, focada e atenciosa. Essas diferenças ficam evidentes pela forma bipartida que a autora usa para narrar sua história, já que cada uma delas revela os segredos e particularidades de cada um dos personagens e como cada um vê o outro.
Escrita e recepção
Apesar de escrever um texto em prosa, Groff usa eventuais artifícios estruturais de roteiros teatrais, como comentários [normalmente maldosos] entre colchetes, que funcionam como rubricas e remetem aos coros da comédia grega. Além disso, ela cita e até parodia roteiros da literatura clássica e de Shakespeare.
Usando uma linguagem poética e um tom um tanto velado, a autora consegue trazer uma discussão sobre dois aspectos importantes da sociedade: a questão de gênero e o privilégio. Desde o que é esperado de cada um dos cônjuges em um casamento até como a sociedade se posiciona em relação a isso, a autora é capaz de várias alfinetadas.
Em termos de recepção, o livro divide opiniões. Em geral, a crítica da grande mídia e em veículos especializados foi positiva: o The New York Times Book Review diz que Groff é uma autora de talento raro e o The New Yorker diz que o livro é incrivelmente bom. Já os leitores da rede social Goodreads nem sempre concordam: vários afirmam não terem terminado a leitura e consideram o livro superestimado (a média de estrelas dadas é 3,58 de um máximo de 5).
Trecho
Não mais um ator fracassado. Dramaturgo em potencial. Aquilo fez emergir a sensação de descobrir uma janela em um cubículo trancado sem luz. Mas ainda sentia uma dor, uma perda. Ele fechou os olhos para isso e, no escuro, foi em direção àquilo que havia pouco apenas Mathilde conseguira enxergar com clareza.
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