“A coisa mais triste para um escritor é se tornar um fantasma”, diz o narrador do novo romance de Lourenço Mutarelli, “O Grifo de Abdera”. Mauro Tule Cornelli, o personagem, escrevia roteiros de quadrinhos para seu amigo Paulo Schiviano desenhar: ambos publicavam sob a alcunha de Lourenço Mutarelli, representado fisicamente por Raimundo Maria Silva, o Mundinho, “um cara descolado, ginga de malandro e uma cara feia mas muito mais expressiva que a minha”.
Isso tudo até que num dia, um estranho aborda Mauro na estação Carrão do Metrô de São Paulo e o entrega uma moeda – o Grifo de Abdera – como pagamento de uma dívida milenar, e ele se dá conta de que também é Oliver Mulato, outro personagem do livro que, entre outras coisas, supera uma Síndrome de Tourette.
Cinco anos depois de “Nada me Faltará”, Mutarelli volta a publicar um romance, seu sexto, pela Companhia das Letras. O hiato, explica o próprio, foi uma sugestão do editor, que ele aceitou de bom grado: “foi ótimo”, ri, numa conversa recente com o “Estado”. “O Grifo” foi escrito num espaço de três meses, e ficou pronto há algum tempo, no início de 2014, mas, por questões editorais, saiu há algumas semanas. O resultado agradou.
“Doei mais de 80% da minha biblioteca de HQs, que agora cabe numa gaveta, sem nenhum arrependimento.”
“Eu vivi uma depressão profunda aos 20 e poucos, foi uma mudança muito radical na minha vida, saí melhor do que entrei”, recorda. “Lembro da sombra que foi a alteração da realidade, em um momento se abre um portal que mistura tudo, você não sabe se é real, se é místico, quebra as estruturas” – essa sombra ecoa pela obra do escritor e, talvez já seja possível afirmar, ex-quadrinista.
“O (quadrinista) que eu era antes morreu”, atesta. “Não consigo mais fazer quadrinhos como fazia antes. Mas ainda brinco muito, com pinturas, desenhos, colagem. Direto nos cadernos, muito experimental” – uma amostra desse trabalho está no quadrinho encartado em “O Grifo de Abdera”, HQ que Mutarelli diz ter feito em transe, “ouvindo música satânica escrevendo o que viesse na cabeça, desenhando o mais rápido possível”.
O autor do detetive Diomedes (que ainda vende bem, segundo o próprio) diz que vem tentando entender a mudança. “Em uma entrevista para a HBO, espremi um furúnculo da minha alma, falei que odeio o meio das HQs, que é quase uma estupidez trabalhar 12h por dia, todos os dias, e não ter retorno. No auge, eu conseguia o dinheiro para pagar o aluguel”, diz. “Doei mais de 80% da minha biblioteca de HQs, que agora cabe numa gaveta, sem nenhum arrependimento”, conta.
No “Grifo de Abdera”, ele remaneja os disparos em direção ao mercado editorial tradicional (“não sei se vocês sabem”, comenta um didático narrador no livro, “mas um autor ganha apenas dez por cento do preço de capa de um livro”).
“Existe um glamour, mas ninguém tem ideia, o pessoal fica chocado com isso. Tenho falado para as pessoas saberem. Todo mundo acha que estou rico, mas está difícil. A luta é a mesma, muito cansativa”, desabafa. “São Paulo tem um profundo desprezo com o autor daqui, é muito cruel”, complementa. “São Paulo gosta de gringo.”
Livro IV
“O Grifo” é, na verdade, um respiro entre os trabalhos do cinema e a produção do aguardado “Livro IV e/ou O Filho Mais Velho de Deus”, título do romance de Mutarelli encomendado na coleção Amores Expressos. O romance teve uma primeira versão entregue à editora, que resolveu operá-lo tanto a ponto de optar, com a anuência do autor, em não publicá-lo. Agora, Mutarelli retrabalha a obra, inicialmente uma história de amor que se passa em Nova York, que, segundo o autor, se tornou um livro sobre “reptilianos e sexo anal”.
“Há dois anos, voltei ao projeto do Amores Expressos, porque é um absurdo ficar oito, nove anos com um livro a ser entregue”, comenta Mutarelli. “Pensei: ‘vou matar esse ruído’, que só para quando bebo ou jogo paciência. Resolvi fazer outra história. E agora enquanto escrevo, eu rio em voz alta, é uma doce vingança”, brinca o escritor – ele quer que publiquem a versão original apenas depois que morrer.
“O que me travou foi um profundo desprezo que nutro por Nova York”, diz Mutarelli – na época, os escritores convidados viajaram por um mês por cidades ao redor do mundo, e deveriam voltar com uma história de amor naquelas paragens. “Tinha que entregar sinopse, foi muito burocrático”, diz – ele agora prepara um livro contra aquela burocracia. “Estou triplicando a quantidade de caracteres exigida, botando nome composto em tudo, o personagem é alcoólatra e gago, repete as coisas”, comenta. Mutarelli também antecipa que deixou a pegada poética da sua escrita, geralmente mais represada nos livros, solta, e que há uma mistura de piada e certa melancolia.
A nova história nasceu quando o escritor zapeava pelos canais da TV por assinatura e descobriu um documentário sobre sereias no Discovery Channel. Após uma indignação inicial, resolveu assistir porque “o cientista tinha uma cara tão triste”. Algumas semanas depois, novamente topou com um filme sobre o caso. “Eu acreditei naquilo enquanto estava vendo o filme”, ri – resolveu então fazer um livro que trouxesse uma sensação de confusão semelhante. Reptilianos que tomam forma humana povoam o “Livro IV”, agora mais perto da publicação do que nunca. “Eu rio e amo esse livro.”
Lourenço Mutarelli, um extraordinário ator de si mesmo
Numa entrevista por ocasião do lançamento de “Que Horas Ela Volta?”, Lourenço Mutarelli confessou para o repórter que chorou duas vezes vendo o filme de Anna Muylaert. São cenas com Regina Casé, que faz a doméstica, Val – a da piscina e a da bandeja. “Aquilo é bom demais”, disse o dublê de ator e escritor. As cenas são realmente muito boas. Marcam uma mudança no comportamento de Val, a doméstica que sempre soube seu lugar na casa, mas aí a filha dela, Jessica, veio bagunçar essa moderna versão de “casa grande e senzala”.
Mutarelli tem todo direito de escolher suas cenas favoritas em “Que Horas Ela Volta?”, mas o que o repórter lhe disse é que há uma cena dele com Camila Márdila, que faz Jessica, que consegue ser tão boa quanto – e até melhor. É a do pedido de casamento, quando o dono da casa, do nada, ajoelha-se aos pés de Jessica com o insólito pedido. Afinal, ele é casado e a garota, por mais abusada que seja, não sinalizou nenhuma liberdade nesse sentido.
Lourenço Mutarelli é um ator maravilhoso. Pronto – está escrito, e sacramentado. Alguém (quem?) dirá que ele não é ator de verdade e que faz o mesmo papel, mas então vamos insistir que ninguém faz esse papel – o papel de Mutarelli – melhor que o próprio. Basta lembrar, antes de “Que Horas...?”, de “O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia, e “Natimorto”, de Paulo Machline, ambos adaptados de romances de... Mutarelli. O papel no “Cheiro” é pequeno, quase uma participação. Ele interpreta o segurança. Em “Natimorto”, é o protagonista masculino, um escritor caça-talentos que, encantado com uma cantora que não vemos cantar mas sonha ser a melhor do mundo, sugere que ambos vivam isolados num hotel para o resto de suas vidas.
Há nos dois filmes, e livros, um transtorno romântico/obsessivo dos protagonistas, mesmo que um seja Selton Mello (no filme de Dhalia) e o outro, Mutarelli (no de Machline). Uma característica parecida, senão exatamente igual, define a identidade do marido da patroa em “Que Horas...?”. Se ele é o marido da patroa, é o patrão? É o dono da casa, e o dono do dinheiro, mas é um personagem tímido, apagado, que vive recluso em sua casa. Ao repórter, Mutarelli disse que Anna (a diretora Muylaert) incentiva seus atores a criarem histórias para os personagens, inclusive escrevendo cenas imaginárias para expressar a fraqueza dessas figuras.
No caso dele, Mutarelli imaginou que o marido tivesse sofrido algum trauma. Queria ser artista, mas não conseguiu e se acomodou na própria mediocridade, até que a Jessica viesse sacudi-lo com sua independência. A cena do pedido de casamento cria um constrangimento. É muito bem escrita, filmada e interpretada. Anna a filmou no fim de uma jornada e disse a Mutarelli que ia tentar outra versão no dia seguinte. Pediu que ele escrevesse a nova cena. Ele confessou-se incapaz. Improvisou. O coração batia tão alto e forte que a captadora do som reclamou. Mutarelli disse que recebeu muitos convites, principalmente depois de “Natimorto”. Só aceitou o de Anna porque a diretora disse que escreveu para ele. Ainda bem que aceitou. A tristeza (o patetismo?) daquele personagem é das coisas que fazem a diferença no filme.
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