Ngungunyane morre no final da trilogia “As Areias do Imperador”, cujo primeiro volume o escritor moçambicano Mia Couto lança no Brasil neste mês.
O spoiler não foi dado pela reportagem, mas pela história: Gungunhane (a grafia do primeiro parágrafo é a africana e esta, a forma como portugueses passaram a pronunciar o nome) foi o último chefe do poderoso Estado de Gaza, que no século 19 desafiou lusitanos no território que viria a ser Moçambique – e morreu em 1906, capturado e exilado no arquipélago de Açores.
Não é a primeira vez que Mia usa personagens reais em suas narrativas – em “O Outro Pé da Sereia”, de 2006, o escritor acompanhou a trajetória do jesuíta Gonçalo da Silveira, que no século 16 empreendeu uma incursão católica no território africano.
Os diferentes períodos históricos de sua nação também foram pano de fundo de suas obras: já em “Terra Sonâmbula”, de 1992, a razão da fuga do velho Tuahir e o menino Muandinga é a guerra civil que assolou o país da África austral de 1977 até o ano da publicação deste romance de estreia do escritor.
No entanto, é a primeira vez que Mia se debruça tão minuciosamente sobre uma época. “Era para eu fazer um único livro, mas, quando estava em processo de escrita, percebi que ia ter quase 2 mil páginas”, conta à reportagem. Assim, o escritor, que começou sua carreira com contos, decidiu alongar sua prosa e fazer sua primeira série.
O resultado que surge dessa empreitada, por enquanto, é “Mulheres de Cinzas”, seu 11.º romance, publicado em Portugal em outubro e que Mia lança na próxima semana por aqui no Brasil.
Primeiro volume
“Mulheres de Cinzas” trouxe para a vida de Mia muitas primeiras vezes. Ele diz, por exemplo, ser inédito o fato de saber para onde está indo sua história, antes mesmo de se sentar para escrevê-la. “Nunca foi meu estilo saber. Para mim, o grande elã, a grande pulsão da escrita é não saber.”
Dessa vez, no entanto, o autor afirma já ter o esqueleto das duas próximas obras, cuja narrativa deve acabar em 1906, nos Açores, junto com a vida de Ngungunyane.
Livro
Mia Couto. Companhia das Letras, 344 páginas, R$ 39,90
Este primeiro volume é narrado por meio de um dueto. De um lado, a menina Imani. Do outro, o militar português Germano de Melo. Ambos são seres estranhos em suas comunidades: ela é letrada, fala português e vive na única família da vila de costumes algo ocidentais.
Ele, republicano convicto, participou de uma revolta no Porto e foi enviado à colônia como punição.
“Eu quis colocar no lado português alguém que também estivesse em condição marginal”, conta Mia. “Ele retrata não um único Portugal, mas um país de várias intenções em uma mesma nação.”
Versões
Personagem controverso, o imperador Ngungunyane é lembrado de forma diferente pelos povos africanos. “Conforme a região do domínio desse Estado, a história varia. Alguns povos foram assimilados, outros encararam com alguma simpatia a invasão e outros resistiram e foram mortos.”
Já os portugueses podem ter exagerado, em sua versão oficial, o poder do imperador derrotado, conhecido como “O Leão de Gaza”.
“Eles derrubaram Ngungunyane numa época em que o Estado já estava em declínio, não era mais tão poderoso”, afirma o escritor.
“Mas tinham que provar para as outras potências europeias que tinham domínio militar sobre o território das colônias, ou iam perdê-las. Então tiveram que construir a ideia de que ele era muito poderoso, porque quanto mais forte meu inimigo, maior minha vitória.”
São as versões o ponto central do romance. Segundo Mia, é preciso ver com resistência o que a “elite moçambicana quer oferecer como um passado oficial”.
“Eu sou mais velho que o meu próprio país” diz Mia, 60, que tinha 20 anos à época da independência. “Num país tão recente, temos que lembrar que houve muitos passados.”
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