Da literatura para o cinema, do cinema para a literatura novamente. Mas agora para um público nem sempre tão corajoso. “Monstros do Cinema”, livro infantil de Augusto Massi e Daniel Kondo lançado pela editora SESI-SP, ainda sem data prevista para Curitiba, explora o medo do desconhecido ao longo de gerações, personificado nas criaturas que saltaram das páginas dos livros para aterrorizar as telas a partir do começo do século 20. E faz um convite para que leitores de idades distintas – avós, pais e filhos – descubram juntos filmes que começaram em 1910, com Frankenstein de J. Searle Dawley, e vão até os dias atuais. Uma espécie de guia do terror.
“A narrativa de monstros existe para nos ajudar a domesticar nossos medos”, explica Massi, poeta e professor de Literatura da Universidade de São Paulo (USP), ex-editor da Cosac Naify. Foi exatamente para dar forma aos próprios medos de infância que Kondo, ilustrador de mais de 30 títulos, convidou Massi para resgatar esse “monstruário” e contextualizar historicamente as brincadeiras que tinha imaginado. “É um jeito bastante elaborado de representar o que é desconhecido dentro de nós”, diz Kondo.
O livro impresso e o aplicativo, que pode ser baixado gratuitamente na Apple Store e permite à criança também virar uma fera, têm um jogo divertido de combinar cabeça, tronco e membros dos seres, montando sua própria criatura – na versão impressa, a divisão é por facas.
História do cinema
Se por um lado há o jogo infantil que satisfaz até quem não sabe ler, por outro, há também uma linha do tempo com informações que procuram relacionar a história do cinema e o contexto mundial, em um trabalho que levou quatro anos de pesquisa e aperfeiçoamento de ilustrações para ficar pronto.
Mais que isso, há dicas de filmes e curiosidades que vão agradar e articular as três gerações e instigar pequenos ciclos de cinema em casa. Tem clássicos em preto e branco, obras mais modernas e animações. Quer saber onde ver vampiros nas telas? Há ficha técnica de Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (de Friedrich W. Murnau, 1922), Drácula de Bram Stoker (Francis Ford Coppola, 1992) e Hotel Transilvânia (Genndy Tartakovsky, 2012).
Até por isso, não espere por bicho papão neste livro. Das 11 criaturas monstruosas – algumas mais para o sentido disforme da palavra – que sobreviveram ao crivo dos autores, há uma história subjacente da evolução do medo.
Monstros e colonialismo
Na primeira parte, quase todos os seres, identificados como “monstros do passado”, vieram da literatura e revelam como a cultura europeia e, principalmente, a norte-americana, tentaram lidar com o colonialismo.
“Do King Kong, na África, à Múmia, no Egito, e ao Drácula, na Transilvânia, todos pertencem a lugares periféricos e exóticos. A cultura ocidental, num movimento de atração e repulsa, batiza sempre de bárbaro e monstruoso o que ela ainda não domina”, diz Massi. As descobertas arqueológicas e o contato com outros povos fomentam o medo que se materializa, por exemplo, com a Múmia, o Frankenstein e o King Kong.
A partir de Godzilla, produto da radioatividade, esta narrativa se modifica. “A Segunda Guerra Mundial e a crescente importância da tecnologia em nossas vidas alteram a história do século 20 e isso pode ser percebido no cinema. Com a bomba atômica, o planeta corre o risco de desaparecer, então, é preciso explorar novos territórios. O colonialismo não se restringe mais a África”, comenta ele. O espaço vira a região a ser conquistada. Porém, logo surge uma geração que cresce vendo e torcendo pelo E.T., de Steven Spielberg, não há mais por que temer tanto os alienígenas.
Zumbis e imigrantes
Hoje, a ameaça provém da ação invisível dos vírus em escala global (não representada neste título) e dos zumbis. Segundo Massi, esta volta dos mortos vivos se relaciona muito provavelmente à marcha de imigrantes na Europa. Porém, não é com eles que o livro termina. A escolhida para fechar a sequência foi a Malévola, que simboliza a mudança no papel da mulher nas telas, da coadjuvante bela para protagonizar uma fera. Para além das bruxas, essa narrativa faz jus aos tempos de empoderamento feminino.
Pouco provável, óbvio, que a criança perceba essa linha histórica e cultural do medo. Ficará em seu subconsciente. Contudo, brincar com as criaturas, ver que são desmontáveis e poder assistir a uma variação de representações na tela é uma maneira de libertar os monstros aí dentro, como propõe o poema inicial de Massi. “O monstro não vem de fora, o medo nos habita. E uma das funções da arte sempre foi formar e preparar o homem para que no futuro possa rir e conviver com o imaginário dos monstros”, explica.
A lacuna deixada pela Cosac
Em época de crise e sem a aquisição de livros pelo governo, o que a editora SESI-SP topou fazer com Monstros do Cinema, que usa recurso de facas, propõe uma leitura intergeracional e vem com aplicativo, pode ser considerado uma ousadia. Palavra em falta na literatura infantil desde o fim da Cosac Naify. Poucos são os livros, e escassas as editoras, que conseguem ser arrojados neste tempo de compras magras.
“A Cosac faz falta. Vou às livrarias, vejo as capas, as ilustrações e percebo o quanto o mundo editorial já retrocedeu. Não há mais uma editora de ponta, desafiando o mercado”, comenta Massi, que foi editor da empresa de 2001 a 2011. “Dificultamos a vida das outras editoras, ajudamos a alterar a concepção do que era o universo infantil. Não fizemos isso sozinhos, mas demos um belo empurrão: as gráficas avançaram, a indústria teve de importar papéis melhores.” A experimentação estava presente na concepção artística e nos temas – ora recusando o lugar comum (como bichos e folclore), ora tratando de questões que eram tabu –, isso sem falar na tradução criteriosa, que trazia nomes como Ferreira Gullar e Marcos Siscar para as crianças.
Para preencher essa lacuna, Massi só vê um caminho: poucos títulos, de bons autores e formas criativas de baratear a impressão. “Só tenho ouvido o discurso do corte, o quadro geral é de queixa.” Segundo ele, editoras com bons catálogos não deveriam se preocupar apenas em reduzir drasticamente o número de publicações anual mas também diversificar os investimentos, apostando uma pequena parcela na invenção, como sempre fizeram a Media Vaca (Espanha) e a Planeta Tangerina (Portugal). “Uma editora de verdade deve contornar a crise negociando e mantendo os seus melhores quadros. Não se pode baratear a criatividade.”
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