O escritor britânico Oliver Sacks publicou um texto particularmente arrebatador no New York Times do dia 19 de fevereiro.
Aos 81 anos, depois de mais de quatro décadas escrevendo sobre as coisas mais difíceis da mente humana, o autor e, de longe, o mais conhecido neurologista do mundo perscrutava a própria morte.
Sacks contou que descobriu metástases múltiplas em um terço de seu fígado, sem a possibilidade de serem contidas. O avanço da doença poderia ser apenas desacelerado, e ele estava se despedindo.
Sacks contou como viveu os últimos anos, examinou o próprio caráter, dialogou com Hume sobre o distanciamento da vida e disse o que ainda quer fazer: “aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, escrever mais, viajar, se tiver força para tanto, alcançar novos graus de entendimento e de discernimento”.
Uma tradução do texto saiu no jornal Folha de S. Paulo do dia 22 de fevereiro. “Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento especial que os escritores e os leitores têm com ele.”
Um antropólogo
Sacks é um dos poucos que conseguiram se manter consistentes ao borrar as divisas entre ciência e arte.
Por meio das histórias de pacientes narradas em seus livros, ele contribuiu para a popularização de conhecimentos sobre o cérebro e sobre síndromes e doenças como Tourette e Parkinson. E tratou esses casos fantásticos com beleza.
Vida
O livro de memórias de Oliver Sacks, On the Move (“Em movimento”), será lançado no dia 28 de abril nos EUA. No Brasil, a Companhia das Letras publicará a tradução no início de 2016.
“O papel dele como popularizador da neurociência é difícil de se comparar. Ele teve um impacto incrível em milhares de leitores, e em toda a cultura pop. Ele é uma influência, um fator cultural. E poucos médicos podem estar numa categoria assim”, diz o professor da UFPR Caetano W. Galindo, que diz aprendido um bocado de neurologia lendo quase toda a obra de Sacks.
“Uma das principais razões desse impacto, e desse interesse todo, é essa visada particularmente humanista. Ele é músico, ele gosta de literatura, ele vê as pessoas como fontes infinitas de interesse. Ele traz para a neurociência toda essa abordagem de escritor, de homem de artes, ao mesmo tempo, claro, em que traz para as humanidades uma carrada de fatos, informações, teorias e visões de todo o aparato neurológico que nos constitui”, diz Galindo.
Obra
Na página 8, leia ensaio em que Oliver Sacks fala sobre as dificuldades que sente para ler (por isso ele defende os livros de papel com letras grandes). Numa conferência, o escritor disse ser “cego de um olho e não muito bom do outro”.
Esse prazer de ler Sacks existe também para os neurocientistas, conforme explica Carlos Henrique Camargo, professor de neurologia e neurociências na Universidade Estadual de Ponta Grossa. “É gostoso ler os livros dele. Quem entende de neurologia sabe que ele coloca as coisas de maneira romanceada, suave, mas o substrato científico dele é muito bom”, diz Camargo. “Ele não foi um pesquisador. Mas é um observador de casos clínicos e facilitou a tradução da neurociência para a clínica. Essa correlação é uma grande contribuição.”
Vendo vozes
No caso da língua de sinais, o esquadro de Sacks teve legado fundador , conforme explica a coordenadora do Curso de Letras Libras da UFPR, Sueli Fernandes. “Vendo Vozes [1998] é um livro que faz, por um lado, um reconhecimento cultural importante da língua da comunidade surda, e por outro, um reconhecimento linguístico da língua de sinais. Quando, historicamente, as pessoas surdas são vistas pela sociedade como um grupo de pessoas com deficiência, simplesmente. Sacks demonstra que as pessoas surdas fazem parte de uma minoria cultural e linguística.”
A professora de história da arte na FAP Rosemeire Odahara Graça identifica nos escritos um viés positivo. “Alguns autores, sempre que falam de doença, falam sempre de uma forma negativa. Eu sempre li Sacks de uma forma positiva. Ele consegue mostrar que mesmo em condições difíceis, há saídas, que o organismo traz possibilidades de o indivíduo viver de outras formas”, explica Rosemeire.
O prazer do Sacks , por J. C. Fernandes
Cheguei à obra do neurologista britânico Oliver Sacks por meio de seus leitores. Foi minha conversão.
Leia a matéria completaMusicoterapia
Uma impressão parecida marcou a leitura de Clara Márcia Piazzetta, professora de Musicoterapia na Unespar-FAP – outra área de contato com Sacks, que em Alucinações Musicais (2007) apresentou casos de pacientes com Parkinson e Alzheimer que tiveram melhoras por meio da música.
“Ele respeitou, acima de tudo, as particularidades de cada caso que relata em seus livros. Com isso temos um neurologista que, antes da doença, olha para a realidade da vida funcional dos pacientes e de suas rotinas de vida – como é viver com limitações e o que essas limitações causam”, diz Clara, que vai adiante e compara a figura humanista de Sacks a Albert Einstein e Edgar Morin. “Por olhares diferentes, eles nos colocam em contato com a complexidade da vida humana.”