Em 1955, aconteceram os conflitos que mais tarde marcariam o começo da Guerra do Vietnã. Nesse mesmo ano, o mundo perdeu Albert Einstein, um dos grandes físicos modernos. Vivia-se ainda um mundo dividido pela Guerra Fria, período de conflito entre duas ideologias: o comunismo e o capitalismo. É nesse contexto que o filósofo francês Raymond Aron publica o livro ‘O Ópio dos Intelectuais’, em que critica o posicionamento marxista de vários colegas e artistas que apoiam a política soviética.
Para resumir seu pensamento, Aron parafraseia uma das mais célebres frases de Marx. Se a religião é o ópio do povo, o francês defende que o marxismo é o ópio dos intelectuais. Essa é a tese que discute no livro, republicado no Brasil pela editora Três Estrelas em junho de 2016.
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O livro causou um impacto considerável quando foi publicado pela primeira vez na França, já que vários intelectuais do período, como Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, concordavam com propostas marxistas.
Mas o livro de Aron não é um panfleto antimarxista, e seu trabalho não visa a polêmica por ela mesma: “ ‘O Ópio dos Intelectuais’ é uma obra de filosofia política, muito densa e abrangente, em que Aron, liberal que era, tenta desmontar alguns conceitos importantes da esquerda marxista”, explica Alcino Leite Neto, editor do livro no Brasil.
Para Leite Neto, o livro é um clássico do pensamento político do século XX. “Ele é um autor que todo mundo deve ler, mesmo os que dele tendem a discordar, porque Aron trava um debate sofisticado e questionador, que ajuda a aprimorar as ideias e a aprofundar as visões de mundo”, afirma o editor.
Buscando explicar a atitude dos intelectuais - implacáveis com os deslizes das democracias e indulgentes com os crimes, por maiores que fossem, cometidos em nome das boas doutrinas -, antes de tudo me deparei com palavras sagradas: “esquerda”, “revolução”, “proletariado”. A crítica desses mitos me levou a refletir sobre o culto da história e depois a me interrogar a respeito de uma categoria social a que os sociólogos não deram ainda a devida atenção: a intelligentsia
Na primeira parte do livro, Aron aborda o que chama de mitos políticos: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Para desmistificar essas questões, ele usa fatos históricos franceses que explicam a fundamentação da esquerda no país, mostra a fragilidade da crença no marxismo e explica como esses termos chave são usados frequentemente fora de contexto.
Depois disso, o autor parte para a crítica da idolatria da história: ele alega que em momentos o sentimento de nostalgia e o apego com determinados momentos da história prejudicaria a visão crítica dos intelectuais. Além disso, ele critica a noção de história proposta pelo marxismo e afirma que o partido comunista criou uma ideologia que se assemelha à religião.
A última parte, intitulada “A Alienação dos Intelectuais”, amplia a discussão sobre o papel dos pesquisadores, filósofos e artistas na sociedade francesa e como eles começaram a crer no marxismo. O motivo, para Aron, é a busca dos intelectuais pela perfeição representada pelos ideais comunistas que, existentes na teoria, não se concretizam na prática desses governos.
Uma das maiores críticas que faz no livro é como alguns intelectuais acreditam em sociedades mais igualitárias (e por isso são simpáticos ao marxismo), mas fecham os olhos para abusos de governos de esquerda que se tornaram totalitários. Em 1955, começavam a aparecer exemplos de violência nos países que adotaram o comunismo como sistema de governo, mas isso parecia não afetar a opinião desses intelectuais. Sua crítica ao marxismo usa como argumento uma defesa de liberdades individuais.
“A política não descobriu ainda o segredo para evitar a violência. Mas a violência se torna ainda mais inumana quando acredita estar a serviço de uma verdade ao mesmo tempo histórica e absoluta”, escreve.
O livro no Brasil
Mesmo com mais de 60 anos de distância e com todas as mudanças políticas pelas quais o mundo passou, com a queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a discussão de Aron continua atual. “Aron sempre será importante quando se pensa na construção de uma sociedade democrática e pluralista”, afirma Leite Neto.
O filósofo, ensaísta e professor da PUC-SP Luiz Felipe Pondé diz que a tese de Aron pode ter um paralelo com o Brasil, “vide a ideologização nas escolas, nas universidades, em grande parte da mídia”. Para ele, esse posicionamento ecoa, já que são os intelectuais que formam professores, alunos, artistas, jornalistas e eventos culturais. “A maior parte dos nossos intelectuais vive na idade da pedra lascada em termos econômicos e políticos”, afirma.
Esta é a terceira vez que o livro é publicado no Brasil. O texto teve sua primeira edição aqui em 1959 pela editora Fundo de Cultura, seguida por uma reedição em 1980 pela Editora da Universidade de Brasília.
“Nos anos 80 a recepção do livro foi discreta, porque havia uma grande euforia naquele momento com a abertura política, e as forças de esquerda (que em grande parte marxistas) estavam na dianteira dos debates intelectuais e políticos do país, após terem sido reprimidas duramente durante a ditadura militar”, explica Leite Neto.