Durante a fase de oitiva de testemunhas no julgamento do homicídio da menina Isabella Nardoni, estrangulada e jogada do sexto andar de um prédio com apenas seis anos de idade, o advogado de defesa dos réus fez uma pergunta a Renata Pontes, delegada do caso: “a senhora não acha estranho um pai matar uma filha?”
A policial experiente que indicava no inquérito a autoria o pai da menina, Alexandre Nardoni, e sua esposa Anna Jatobá respondeu que não. “Acho mais estranho um roubo em que nada foi levado”.
A tese de que um ladrão desconhecido teria entrado no apartamento dos réus e atirado o corpo da menina de um prédio em São Paulo em 2008 já tinha sido afastada pela perícia criminal.
Semanas depois, o júri popular confirmaria a versão da policial: era mais um crime cruel cometido dentro da família. As estatísticas mostram que este tipo de crime é mais comum do que se possa imaginar. No total, 10% de todos os crimes dolosos contra a vida são cometidos entre familiares.
O caso Nardoni e outro assassinato familiar célebre – o duplo homicídio de Manfred e Marísia von Richtofen, planejado pela filha Suzane, são a matéria prima do livro “Casos de Família”, da criminóloga Ilana Casoy.
Ilana tem dedicado as duas últimas décadas para estudar crimes violentos e como funcionam as mentes criminosas que os cometem.
Nos dois casos, ela acompanhou as investigações e expõe no livro sua visão particular através do exame de provas, dos julgamentos, das reconstituições dos crimes e de entrevistas e anotações que fez durante os processos.
Casos de Família – Arquivos Richtofen e Nardoni
Ilana Casoy, Darkside Books, 528 páginas. R$ 45.
Thriller
O texto de Ilana dá um tom de thriller aos dois relatos, ainda que já saibamos como terminam os julgamentos.
“As anotações foram escritas no calor dos fatos e trazem observações daqueles momentos. Eu sou chamada para participar porque consigo ler o processo pela perspectiva humana e não a parte processual e legal que às vezes é muito difícil”, diz a autora.
No relato de Ilana, além de acompanhar o passo a passo das investigações e os julgamentos de dentro, Ilana consegue analisar os motivos que levaram os assassinos a ultrapassar a linha da lei e do sagrado em crimes cruéis contra os próprios pais e a filha.
A autora não tem pudor de expor suas dúvidas ou sentimentos, como quando encontra a turba que hostilizava o advogado do casal Nardoni antes do julgamento.
“É incrível como a população confunde o papel do advogado e o ataca como se ele próprio tivesse cometido o crime. Será mesmo que a sociedade ficaria satisfeita com uma condenação sumária de réus que não teriam direito à defesa em um tribunal do júri?”, questiona.
No livro Ilana ressalta a importância dos peritos criminais que foram fundamentais na resolução dos dois casos e que, no Brasil, trabalham em condições precárias. “São verdadeiros heróis, detetives médicos da vida real que desvendam crimes violentos através da ciência”.
Crimes entre familiares são 10 % dos assassinatos violentos
No livro “Casos de Família”, a escritora Ilana Casoy conta que no mesmo dia da reconstituição do assassinato do casal Richtofen havia uma outra reprodução simulada de homicídio praticado por um filho. O caso não mereceu atenção da imprensa talvez porque, ao contrário do primeiro, não era um crime ocorrido dentro de uma família perfeita e bem sucedida.
No estado de São Paulo, onde ocorreram os crimes das famílias Nardoni e Richtofen, um a cada dez assassinatos é praticado contra pessoas da mesma família do autor. Levantamento da Secretaria de Segurança de São Paulo (SSSP) mostra que, dos 3.414 homicídios dolosos praticados no estado em 2015, 10% aconteceram após desavenças entre companheiros e familiares.
Os dados constam do “Perfil do Homicídio” divulgado pela SSSP, que indica a motivação pela análise de boletins de ocorrência.
Além de conflitos entre familiares e casais, há outras dez classificações. Os dados apontam que os homicídios dolosos em família são mais frequentes, por exemplo, do que os motivados por tráfico de drogas (0,8%), acidentes de trânsito (1,7%) ou morte de preso (0,3%).